O CONFINAMENTO que estamos mantendo para evitar o contágio pelo coronavírus amplia o tempo mas apressa os prazos. Queremos terminar o que estávamos fazendo antes, especialmente se podemos fazer o que tem se ser feito em nossas casas, como escrever, por exemplo.
Aos 83 anos, quando nesta pressão do confinamento me pedem algum texto com prazo de entrega em poucos dias, eu penso duas vezes: se eu soubesse que ia morrer amanhã, correria para escrever este texto?
No caso do convite de Ana Basaglia, a resposta que me dei foi um rápido e alto sim, sim, eu escreveria. Primeiro porque foi um pedido de Ana, uma queridíssima ex-orientanda a quem admiro muito. Segundo porque nunca experimentei a catarse de escrever sobre minha vida, só sobre a produção profissional (quando pesquisadores me pedem). Terceiro porque nunca tive a chance de manifestar minha admiração pela minha filha que, como sequela de um AVC de Tronco Cerebral em 2002, ficou tetraplégica, sem falar e sem comer aos 36 anos de idade, tendo uma filhinha de um ano e oito meses.
Sou professora ligada às Artes Visuais e ao Design e, principalmente, à Arte/Educação há mais ou menos 64 anos. Minha vida foi pautada por mortes, pelo menos um desastre político e pela tragédia da minha filha. Estes eventos mudaram meu meio ambiente afetivo e geográfico.
Nasci no Rio, meu pai morreu quando eu tinha 3 anos. Fui morar no Recife com minha mãe que morreu três anos depois, aos 33 anos. Meus avós me levaram para viver com eles em Maceió, onde fiquei até os 14 anos, quando meu avô morreu. Meu tio então convenceu minha avó a se mudar para onde ele vivia e voltei para o Recife — nasci no Rio mas sou pernambucana por eleição e cultura. Minha memória anterior aos 14 anos quase não existe! Não tenho amigos de infância, nunca conheci os amigos de meu pai nem de minha mãe. Memória tem que ser alimentada, mas eu mudava de lugar. Casei-me muito apaixonada com um colega de Direito e vinte dias depois sua mãe, que era viúva, morreu e nós assumimos a família de sete filhos dela, com crianças e adolescentes de 9 anos a 19 anos.
Com a ditadura de 64 nos mudamos para Brasília com nosso primeiro filho e três irmãos de meu marido. Grávida de minha filha, fomos demitidos da UnB com mais duzentos professores, que era quase o total de professores da Universidade na época.
Em São Paulo, onde tentamos o exílio interno novamente, fomos muito bem recebidos, fizemos muitos amigos e tivemos uma vida plena de entusiasmo e produtividade. Ensinamos várias vezes no exterior e já estávamos aposentados da USP, mas trabalhando e escrevendo muito com os dois filhos casados quando, no dia da defesa do seu Mestrado, minha filha teve o AVC. Um dos examinadores faltou e enquanto a orientadora ligava para ele para saber o que acontecera, Ana Amália começou a passar mal. Meu marido levou-a para o hospital, o neurologista estava de férias e só chamaram seu assistente 18 horas depois.
Já não havia mais nada a ser feito, somente esperar que o corpo reagisse. Mais de um mês na UTI com amigos de todas as crenças e adeptos de terapias alternativas agindo desde o Reiki ao espiritismo, passando pelas orações das maravilhosas freiras do Santa Marcelina, onde ela estudara e onde hoje estuda minha neta Ana Lia.
Foram quatro meses de hospital e um ano de desespero em busca de meios alternativos de comunicação para ela poder se expressar e dialogar conosco, pois ficara com a cognição e a memória completamente preservadas. Isto foi a dezoito anos atrás. Meu filho conseguiu na internet, ainda muito atrasada na época, um programa para comunicação meio complicado, mas ela pode nos informar que a enfermeira que contratamos para ela à noite ainda no hospital a mal tratava, e se ela chorava a chamava de chata. Esta moça ia toda noite de bíblia na mão dizendo-se evangélica. Este caso me desiludiu acerca da humanidade e passei a resguardar minha filha como uma leoa defende os filhotes. Briguei muito com muita gente, quando poderia ter dialogado para melhorar as coisas…
Para aprimorar a comunicação alternativa, levei-a seis vezes à Brasília para o Hospital Sarah Kubitschek, onde eles criaram um sistema de comunicação por computador específico para ela. O único movimento possível para clicar um mouse especialmente leve colocado abaixo do queixo foi o de abrir a boca, e foi sua salvação. O acesso ao computador permitiu que mais tarde ela fizesse um Doutorado na USP.
Em 2005, graças a uma a ação conjunta da UnB e do Hospital Sarah, Ana Amália teve a primeira experiência de trabalho depois da tragédia. Suzete Venturelli, diretora do IdA, e Sheila Campelo, coordenadora do Curso de Especialização em Arte/Educação à Distância, foram falar com os médicos para saberem e se assegurarem de que seria possível ela ser tutora do Curso. Também conseguiram marcar uma ida dela ao Sarah que coincidisse com a reunião final e presencial do curso, em Brasília. Aquilo mudou a perspectiva dela diante da vida possível. Nenhum dos alunos até então sabia que ela era muda e tetraplégica.
Cada ida ao Sarah era uma conquista. Naquele ano de 2005 foram duas conquistas. Primeiro, saber que podia trabalhar para colaborar com a sociedade, mesmo que não desse para sobreviver do trabalho. Em segundo lugar, aprendeu a cuidar da aparência. Antes do AVC, Ana Amália se vestia displicentemente com o uniforme da época: calça jeans e camiseta. Passou a ser muito vaidosa, aposentou o jeans e escolhe cuidadosamente o que veste, só não usa maquilagem.
Ela sempre gostou muito de sair e o Sarah estimulava os passeios, mas as enfermeiras só a deixavam sair se estivesse bem vestida, como elas diziam, “bonita e se apresentando com dignidade”. Ela aprendeu com as enfermeiras o que a mãe nunca conseguiu ensinar.
Outras grandes conquistas se seguiram, como o Doutorado na USP, que resolveu fazer depois que o pai morreu, quatro anos após a doença dela. Encontrou em Regina Machado uma orientadora extraordinária. Trabalhou em pesquisas de Arte e Tecnologia no Pós Doutorado com a professora Rosangela Leote, da UNESP, que a incentivou muito e fortaleceu sua segurança intelectual. Agora faz projetos e dá consultoria para a empresa cultural Arte Educação Produções, que já vai fazer 20 anos.
Além de minha filha e eu trabalharmos com Arte, minha neta está no primeiro semestre de Artes Plásticas e tem aulas remotas, das quais está gostando muito. Ana Lia é muito consciente de que não podemos sair de casa para a proteção da mãe dela contra o contágio. Pensei que ia ficar mal humorada, mas está sendo divertida, fica só impaciente mudando de ambiente, da sala para o quarto dela, para o meu quarto, para meu escritório que virou sala de aula, como ela diz, pois também estou dando aulas remotas, embora não seja íntima do meio digital. No primeiro dia pirei e disse adeus aos alunos depois de uns vinte minutos A aula seguinte foi mais longa, hoje está normal — mas eu ainda me sinto muito artificial.
Voltei a ser enlouquecida como no início da doença de Ana Amália. Como protegê-la, se contamos com quatro enfermeiras que se revezam e ela ainda precisa de fisioterapia e fonoterapia? É uma loucura controlar o trânsito em casa.
Hoje descobri que uma das enfermeiras durante a noite está atendendo Ana Amália sem usar máscara e não troca a roupa quando chega. Ana Amália já pediu a ela três vezes para usar a máscara, e ela ameaçou ir embora. Até que hoje Ana Amália me contou. Acabo de ter uma conversa difícil, pois a enfermeira mora na região Norte de São Paulo, onde os moradores contam que estão morrendo famílias inteiras e isto não é divulgado. Vou ter que vigiar de madrugada também. Ana Amália tem estado calma, mas se sente muito vulnerável. Ela já teve um episódio que foi preciso chamar ambulância pois a sonda por onde é alimentada e medicada estourou e teve de ser mudada; também precisamos de atendimento médico especializado, pois ela tem muitas dores nas pernas e nas mãos por causa do endurecimento causado pela imobilidade.
Depois desta história toda, como vocês imaginam que estamos reagindo nesta quarentena? Somos três gerações neste apartamento em que vivemos, a rua está vazia, o sino da igreja da PUC em frente toca ao meio-dia e às seis horas da noite. É nostálgico e me faz lembrar os amigos que estou perdendo, não só aqui mas nos Estados Unidos também, onde morei diversas vezes.
A Arte nos une e nos apascenta. Não é babaquice. Desconfio do discurso de auto-ajuda que anda por aí consolando as pessoas, de que a vida vai mudar para melhor depois do coronavírus, seremos mais tolerantes, mais colaborativos, pensaremos mais nos outros etc.
Como esta transformação vai se operar, se agora no momento crucial, no pique da epidemia, as pessoas estão agredindo as outras na rua e escarnecendo as mortes, por razões de política eleitoral, uma eleição que vai acontecer daqui a dois anos?
O que seria de nós se não fosse a Arte nesta pandemia? Ouvir músicas, ver filmes, programas de humor, ler, desenhar, criar, tudo isto é a desprezada Cultura que nos embala. O Netflix é o herói da pandemia (para os que podem pagar).
A tecnologia vai sair desta crise da saúde como uma deusa, mas a qualidade do que é veiculado por esta tecnologia só a Arte pode assegurar. [A.M.T.B.B.]
ANA MAE TAVARES BASTOS BARBOSA, 83 anos, mãe do Frederico e da Ana Amália e avó da Ana Lia, mora em São Paulo/SP, é professora universitária, pesquisadora e pioneira na arte-educação. Esse relato é parte do livro Mães na Quarentena, que reúne 40 relatos de mães durante a quarentena da pandemia Covid-19 em 2020.