Mães na Quarentena: sobre mulheres, casas e lares

MEU AVÓS maternos, de quem eu trouxe o sobrenome que utilizo hoje, construíam casas. Imigrantes pobres vindos de Portugal, chegaram ao Brasil e foram trabalhar na roça, no interior de São Paulo. Ainda jovens, decidiram ir para a capital e, lá, na periferia da Zona Norte paulistana, compraram um terreno e construíram uma pequena casa onde passaram a viver com a família. Construíram sozinhos, ele como pedreiro e ela como servente. Passado algum tempo, compraram o terreno ao lado e, enquanto viviam na primeira casa, construíram a segunda. E assim foram fazendo. Vendiam a casa anterior, compravam o terreno ao lado e levantavam as paredes. Consigo contar seis casas que eles construíram assim. Dos mais variados tamanhos e tipos, casa de gente pobre e trabalhadora. Foi numa dessas casas, com uma das paredes externas ainda no reboco, que vivi grande parte das memórias que tenho de família e onde ambos viveram até morrerem. Almoços de domingo, Natais, brigas familiares, risadas, primos brincando, coelhos da Páscoa. Foi também nesta última casa que lembro de ver meu avô, já acamado, pedindo para que eu passasse a conta bancária do governo para que ele depositasse mensalmente o valor da minha faculdade. Quando eu disse a ele que não seria preciso, pois eu havia sido aprovada em uma universidade pública paga com os impostos do povo — a primeira da família a cursar universidade —, ele disse que, então, faria questão de pagar o aluguel da minha nova casa: R$ 250,00 de uma kitnete alugada por minha mãe para que eu pudesse, não sem sacrifícios, cursar a faculdade de Ciências Biológicas no interior de São Paulo, nos idos de 1996.

“A minha primeira casa da vida adulta”, cheguei ingenuamente a pensar. Mas com 17 anos e muita imaturidade, não havia a menor possibilidade de transformar aquilo numa experiência de lar. Era mais um quarto que funcionava como extensão da casa materna, da universidade e dos botecos sujos da cidade universitária, fato. Daquela kitnete se seguiram outras duas casas, repúblicas. Mas uma república não é propriamente uma casa. São cômodos que compartilhamos com outras pessoas, onde dividimos algumas coisas e em outras colocamos nomes para que não se confundam. República não é a nossa casa, foi o que eu entendi daquela experiência, seja verdadeira ou não essa conclusão.

E então, aos 21 anos, parti novamente, em direção ao meu mestrado na grande universidade dos meus sonhos. Outra cidade. Outra “casa”. Essa foi uma experiência mais dolorosa. Sentir o vazio de um apartamento de dois quartos (e pensar sucessivamente “por que raios aluguei com dois quartos?”) para provar a mim mesma que, agora sim, seria uma casa, paga com minha bolsa de mestrado, vestiria a roupa da “adulta”, sem sequer imaginar o que seria isso (hoje, com o dobro da idade, ainda não sei, inclusive…). Foram horas sucessivas de solidão, de tentar preencher aquele espaço e não encontrar maneira disso, até sucumbir a essa expectativa-projeção e colocar o segundo quarto para alugar. República, novamente. De novo, um “não lugar” de casa. Aos 23 anos, a resposta para o que viria a ser um “lar”, uma “minha casa”, ainda me escapava…

Nos três anos seguintes, foi um misto de abandonar a busca por meu lar e me jogar no mundo. O que me levou a percorrer um caminho de morar em quartos alugados em um Parque Nacional Marinho até voltar para a casa da minha mãe. Lar? Não. Não seria daquela vez também.

E então, aos 27 anos, parti novamente. E eu não sabia. Mas estava indo para onde cresceriam minhas raízes, não aquelas que me ligam à minha ancestralidade, mas as que ligariam a minha descendência a mim. E vim para a cidade em que vivo há quase 15 anos. Foram muitas casas… Dividindo com amores, com dores, com desencontros, com desalinhamentos, com confusões entre quem eu de fato era e quem eu me esforçava para ser. Mas foi nessa vinda para onde vivo hoje que aconteceu o que realmente começou a me transformar.

Enquanto eu e um antigo namorado procurávamos uma casa para alugar na chegada a esta cidade, passamos em frente a uma casa. Ela estava à minha direita. Uma casa simples, de dois andares, tijolinhos à vista, com uma porta de vidro e uma janela na parte de baixo e duas janelas com persianas que estavam fechadas na parte de cima. Senti algo que não soube explicar e pedi para que ele parasse o carro. Não faço a menor ideia do porquê, apenas disse:

— É aqui. Para.

Desci do carro. Havia uma senhora no terreno da casa ao lado, terreno que era dividido da casa de tijolinhos apenas por uma cerca de arame. Ela me olhou, sorriu, dei boa tarde e começamos a conversar. Perguntei se a casa estava para alugar e ela disse que havia acabado de assinar o contrato com uma locatária. Manifestei que era uma pena, mas que estava feliz por ela, agradeci e quando eu já estava indo embora, ela perguntou meu nome. Eu disse. Perguntei o dela. Ela disse. Ela perguntou se poderia me dar um abraço e eu, que adoro abraços e sinto tanta falta deles neste período difícil de quarentena, disse que sim. Nos abraçamos ali mesmo, pela cerca.

— Um dia você virá morar aqui… — ela disse com uma naturalidade espantosa.

Sorri para ela e me despedi. Fomos embora.

Oito anos depois, já com uma bebê de dois anos fruto de outro relacionamento, passei novamente por aquela casa — eu sempre passava por ela… Ela tinha telhados com pontas viradas para cima que me lembravam casas tailandesas, sentia-me bem passando por ali, ela me trazia paz. Eu passava, algumas vezes parava, olhava e seguia. Mas naquele dia, a ausência de qualquer sinal de ocupação me chamou a atenção. Parei. Desci do carro. Adivinha? Lá estava a senhora, vindo do fundo do terreno para a frente. Ela me olhou, sorriu e disse: “Ligia! Você voltou!”. Eu também me lembrava do nome dela: Helenice. Ela abriu o portão, deu-me um abraço e disse:

— E então? Veio alugar minha casa?

— Ela está para alugar?! — perguntei de maneira muito surpresa.

— Está! — ela me respondeu. Mas pegou minha mão esquerda, colocou duas chaves nela e disse: Bem, agora não está mais.

No dia seguinte, os documentos já estavam assinados.

É a casa em que vivo hoje, sete anos depois. A casa onde eu e minha filha estamos sobrevivendo a uma pandemia. Em quarentena. Totalmente isoladas. Estamos finalizando nosso primeiro setênio juntas, nós e essa casa. Não é mais a casa em que moro. É a casa em que vivo com minha filha. E há uma grande diferença entre morar e viver… É a casa em que minha filha vem vivendo a imensa parte de sua vida. Nesta casa vivi muita coisa. Muita coisa feliz. Mas também muito choro e desespero. Uma árvore caiu sobre ela numa tempestade e destruiu seu telhado, levando consigo as pontas viradas para cima. Cuidei de tudo, reconstruí com o mesmo amor que eu teria se ela de fato fosse minha, do mesmo material com que foi construída, com a ajuda de muitas pessoas. Aqui escrevi três livros, uma tese de doutorado e centenas de textos. Ajudei a organizar manifestações.

Organizei uma campanha eleitoral. Casei. Descasei. Sofri a perda do meu pai. Atendi centenas de mulheres. Vi minha filha crescer e se transformar de bebê em uma garota formidável. E… Aqui também perdi a minha amiga, a proprietária desta casa. Que tão respeitosamente me permitiu viver nela, talvez porque já soubesse que aqui  eu construiria o meu lar. Ela partiu. Não sem antes me confidenciar muita coisa, mostrar um álbum de fotos de quando era uma linda jovem,

contar suas tristezas e frustrações, trazer-me o prato do dia que ela cozinhava, receber das minhas mãos o mesmo prato preenchido com a minha comida e dizer algo que me deu força nas noites mais  difíceis de insônia: “Sinto que construí essa casa para que você vivesse nela um dia…Espero que um dia ela seja sua”.

2020 chegou trazendo um vírus de nome difícil e nos obrigando a uma quarentena. A primeira quarentena mundial desta geração. Trouxe angústia, dúvida, incerteza. E, quem diria, veio acompanhado da orientação epidemiológica que, em outros tempos, seria dos maiores gatilhos que eu poderia viver:

#FIQUEEMCASA

E foi durante os cinquenta e três dias de quarentena e isolamento social que se completam no momento em que escrevo essas linhas, estando somente eu e minha filha, juntas durante vinte e quatro horas, vivendo absolutamente tudo em comunhão, que eu percebi que um lar e uma casa são coisas absolutamente diferentes. Muitas pessoas passam uma vida buscando o sonho da casa própria. Mas o que deveria ser uma busca incessante é por um LAR. Percebi da maneira mais inesperada que, numa quarentena, sendo uma mulher em completo isolamento com sua filha, o que me sustenta, o que me mantém de pé, o que me permite acordar de manhã para enfrentar a angústia do desconhecido e da amedrontadora presença de um vírus e ajudar uma criança a fazer o mesmo, não é estar em uma casa. Mas ter a consciência de que a transformei em um lar. E isso eu não fiz em função de um espaço físico, material. Isso construí diariamente, naqueles dias mais banais e entediantes quando um vírus letal parece distopia. Naqueles momentos exaustivos de lidar com a rotina da sobrecarga e educar uma criança com amor e para o amor enquanto se educa a si mesma para ser uma pessoa mais coerente: é ali que a gente constrói um lar. No incentivo ao diálogo. No exercício afetuoso. No respeito mútuo. Na horizontalidade. Na não violência. Na validação de sentimentos. Na parceria. Na ausência de opressão. No amor.

Tanta gente tem uma casa sem ter, de fato, um lar… E eu e minha pequena de 9 anos construímos um. Um lar que nos acompanhará por onde quer que precisemos ir, sobrevivamos ou não a essa doença. O que vem nos salvando é isso: nós vivemos em um lar. Uma mulher e uma criança. Justamente a díade mais subalternizada nesta sociedade patriarcal e tantas vezes desconsiderada como família.

Esta quarentena comprovou para mim o que diz a música da banda Francisco El Hombre, que conheci no ano de 2017: eu sou meu próprio lar. Onde, muito amorosamente, vivo com minha filha. E é por isso que o #FIQUEEMCASA, para mim, não tem sido doloroso. Doloroso, mesmo, é saber que tantas de nós enfrentam dificuldades para construir esse lar dentro de suas próprias casas.

Fique em casa com suas crianças, sim, se puder ficar. Mas, especialmente, transforme a casa em que vive em um lar. Onde você tenha prazer de estar, onde possa amar integralmente, onde haja amor, respeito e confiança, onde você seja respeitada pela mulher que é, criando crianças e sonhos.

Meus avós construíram casas. Eu construí um lar.

Fique em casa. Mas, acima de tudo, seja seu próprio lar. [L.M.]

 

LIGIA MOREIRAS, 41 anos, mãe da Clara, paulista radicada em Florianópolis/SC, é escritora, doutora em Ciências e em Saúde Coletiva e criadora do site Cientista Que Virou Mãe. Esse texto é a versão completa do publicado no livro Mães da Quarentena, publicado pela Editora Timo.

 

Especial de fim de ano da Timo: entre 24/12/22 e 08/01/23, a cada dois livros comprados site da editora, você poderá solicitar também o livro “Mães na Quarentena”, que será enviado GRATUITAMENTE – 1 exemplar por compra de qualquer outros dois livros nossos.

Um livro feito por mães, relatando as experiências de mães durante o isolamento social do Covid-19 em 2020. São 40 relatos com muita humanidade, muita maternidade e perspectivas que trazem à tona muita identificação entre mulheres.

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