Ao ser provocada a escrever sobre a descriminalização do aborto até 12 semanas de gravidez, me questionei sobre o lugar de fala que ocuparia. Seria o lugar de fala que se estrutura de forma profissional, o de jornalista?
Para isso, eu poderia passar horas entrevistando mulheres que abortaram voluntariamente, poderia pesquisar os estudos e me debruçar sobre as estatísticas sobre aborto no Brasil e no mundo, as recomendações da OMS e desenvolver uma espécie de dashboard do assunto – método de escrita, aliás, com o qual tenho intimidade.
Se eu fosse seguir esse caminho, eu buscaria contar histórias de pelo menos sete mulheres. Para isso, eu acabaria conversando, em média, com 30. Selecionaria nomes para substituir os originais, e passaria horas lidando com essas histórias.
Isso, evidentemente, com as mulheres que sobreviveram após abortos voluntários. Elas seriam, por já ter me debruçado sobre dados estatísticos, mulheres com acesso a recursos financeiros e clínicas clandestinas estruturadas. Quem tem estrutura no Brasil tem cor, carro do ano e classe ascensionada. Eu não posso conversar com as mortas. Até mesmo nas religiões afro-brasileiras, onde a conversa com quem já morreu é mais habitual, há muito preconceito com a mulher que aborta.
O caminho que se mostrou, assim, foi um dashboard de outra espécie, em camadas. Para compreender o contexto do que é aborto no Brasil, por isso, é necessário trabalhar com algumas premissas:
- direito a autonomia sobre o próprio corpo,
- racismo estrutural
- e políticas de saúde pública para mulheres.
O que é autonomia sobre o próprio corpo?
É a capacidade de resolver por si mesma o quê, quando e como fazer o que quiser com seu próprio corpo, isto é, com a sua própria existência. Como seres humanos, só existimos através de um corpo. Como mulheres, não exercemos plena autonomia sobre nossos corpos.
Mulheres são, por definição biológica, fêmeas humanas. E, por isso, aquelas que detém a capacidade reprodutiva, presumida ou exercida. Por presumida, entende-se que a mulher pode reproduzir. Por exercida, a mulher que já teve filhos físicos e humanos. Qualquer ser humano é além-biologia, é constituído também pelo processo do seu nascimento, sua infância, história, crenças e valores que constituiu ao longo de sua trajetória nesta Terra, suas escolhas (muitas delas aparentemente independentes e conscientes), seus caminhos predeterminados pela sua raça, classe social e recursos financeiros. O ponto de princípio, porém, é sua biologia.
Ao se tratar de ser mulher, desde a vida intrauterina já se sabe de um destino óbvio: a capacidade simbólica de se tornar mãe. Uma chance. Uma possibilidade de garantir a continuidade. A única forma de encarnar como ser humano nesta Terra é gestar um ser humano dentro do útero de uma mulher.
A única forma de garantir que isso aconteça é controlar a autonomia deste corpo. Não parece óbvio que quando se fala em aborto se fala em autonomia dos corpos?
O que vem sendo debatido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é a descrimalização do aborto até a 12 semana de gravidez. A discussão sobre a descriminalização do aborto foi provocada no STF pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), autor da ação, e chegou a ser objeto de audiência pública em 2018 convocada pela ministra Rosa Weber. O objetivo era debater o tema com especialistas e representantes de entidades governamentais e da sociedade civil. A ministra Rosa Weber votou a favor, porém, o julgamento foi suspenso por pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso, e, com isso, prosseguirá em sessão presencial do Plenário, em data a ser definida.
Enquanto a data não é definida porque um homem, mais uma vez (no uterus, no opinion), barrou um tema que deve ser decidido por mulheres, vale a pena compreender o cenário por trás da legalização do aborto no Brasil até 12 semanas de gestação.
Racismo estrutural e políticas de saúde pública para mulheres
A história do Brasil se constitui através do racismo estrutural. Um país que se traduz desde o ensino básico escolar como um país que foi descoberto, não invadido.
Uma cultura que compulsoriamente busca ressignificar a base originária indígena ao mesmo tempo em que se esforça para marginalizá-la, calcada em uma economia e política de exploração colonialista e escravocrata que, com muito esforço, se assenta em repudiar a cor do Brasil e se esforça em não reconhecer que o Brasil é uma terra que foi invadida, escravizada e colonizada de forma violenta e expurgatória. O legado da política eugenista.
“Segundo a antropóloga social Lilia Schwarcz, a eugenia oficialmente veio ao país em 1914, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com uma tese orientada por Miguel Couto, que publicou diversos livros sobre educação e saúde pública no país. Couto via com maus olhos a imigração japonesa e anos mais tarde, em 1934, seria um dos responsáveis por implementar um artigo na Constituição da época que controlava a entrada de imigrantes no Brasil. Nos primeiros anos do século XX, porém, havia no Rio, então capital brasileira, a ideia de que as epidemias brasileiras eram culpa do negro, recém-liberto com a abolição da escravatura (1889)”, escreve Tiago Ferreira no artigo O que foi o movimento de eugenia no Brasil: tão absurdo que é difícil acreditar.
A cultura eugenista brasileira atravessa todas as formas de convivência e aplica em todas as relações sociais a validação do que é ética e moralmente correto a partir de conceitos baseados em cor e traços genéticos. Em outras palavras, o aborto só é amparado para manter a vida se for para a vida da mulher branca. Se fosse sobre o corpo de um homem, o aborto não seria crime. O racismo estrutural é base da pauta sobre a descriminalização do aborto quando escancara quem, quando e onde pratica o aborto voluntário.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 55 milhões de abortos ocorreram no mundo entre 2010 e 2014 e 45% foram inseguros. Segundo estudo de 2013, uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fizeram, pelo menos, um aborto na vida. Hoje existem 37 milhões de mulheres nessa faixa etária, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dessa forma, estima-se que 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos um aborto. A Pesquisa Nacional de Aborto 2021 (PNA 2021) é a mais recente sobre aborto no Brasil. O estudo conclui que “o aborto é um evento que ocorre no início na vida reprodutiva das mulheres: a PNA 2021 constatou que 52% tinham 19 anos ou menos quando fizeram o primeiro aborto. Taxas mais altas foram detectadas entre as entrevistadas com menor escolaridade, negras e indígenas e residentes em regiões mais pobres”.
“O racismo está cravado na construção das cidades. A gente não vai conseguir concretizar os nossos planos de desarticular o racismo se não pensarmos o espaço urbano”, disse Joice Berth. Abordar espaço urbano e entrelaçar aborto é dialogar sobre lugares de poder e lugares de fala. Quem pode falar sobre o que e quem ocupa tal espaço.
Consciente de que o aborto voluntário no Brasil é majoritariamente realizado em regiões mais pobres, por mulheres com menos escolaridade, com 19 anos ou menos, ou seja, sem estrutura de recursos de renda estável, moradia e alimentação por mulheres negras e indígenas (brancos ganham 68% a mais do que os negros (IBGE 2019); 65% das casas chefiadas por pessoas negras estão em situação de insegurança alimentar, Rede Penssan), é evidente a quem o direito de não exercer a capacidade reprodutiva presumida está sendo negado.
O debate que centraliza a descriminlização do aborto
No Brasil, até 28 de Setembro de 2023, o aborto é legalizado em três situações: quando a gravidez ocorre em consequência de estupro, quando a gravidez põe em risco a vida da mulher e quando o feto tem anencefalia, formação grave e incompatível com a vida, cujo permissão para aborto através de vara judicial.
Para compreender os motivos de legalizar o aborto voluntário até 12 semanas, é plausível compreender o que é um feto de 12 semanas. Na 12ª semana de gravidez, o feto pesa menos de 20 gramas e mede 6 centímetros, já tem os órgãos praticamente todos formados, já possui unhas.
Aliás, a maioria das mulheres que abortam espontaneamente, abortam até as 12 semanas. Aproximadamente 85% dos abortos espontâneos ocorrem durante as primeiras 12 semanas de gravidez e até 25% de todas as gestações terminam em aborto durante as primeiras 12 semanas. Os restantes 15% dos abortos espontâneos ocorrem, em média, durante a 13ª até a 20ª semana. O feto é, de fato, um bebê e essa denominação está associada ao período no qual seus órgãos estão em desenvolvimento. Até a 12ª semana de gestação, o corpo e todos os órgãos se constituem para, a partir desse período até o nascimento, amadurecerem. Ou seja, não se trata de um bebê pronto para viver fora da vida intraturerina. Aliás, considera-se em viabilidade fetal bebês prematuros a partir de 24 semanas, com tratamento intensivo para sobreviver.
Criminalizar o aborto não impede a prática, de acordo com as evidências. As mulheres pobres, negras e indígenas estão mais vulneráveis a perecer no aborto clandestino. Garantir o direito de aborto voluntário até 12 semanas é oferecer contornos seguros para que a mulher escolha se quer manter a gestação ou não dentro de um tempo que dê direitos garantidos a ela, de sobreviver, e ao bebê, que dali em diante se desenvolverá a pleno vapor.
Debater a descriminalização do aborto até a 12 semana de gravidez, é, dessa forma, olhar para os dois sujeitos da gravidez, sendo a mulher o principal deles, já constituído. Sem a mulher plena em saúde e em posse da escolha de manter a gravidez, as consequências sociais, políticas e econômicas para ela e seu filho são estruturalmente desastrosas. Criar um filho no Brasil não é tão simples quanto parece. Após seguir com a gestação (com ou sem escolha), a mulher ainda enfrentará um sistema de saúde marcado por violência obstétrica, com sorte, luta e recursos financeiros não será atingida pela indústria da cesárea, com muita determinação não será engolida pela cultura do desmame e amamentará seu filho, com muita sorte manterá seu emprego, se o tiver, e com mais sorte ainda poderá continuar seus estudos, se não for impedida pelas próprias instituições de lá estar porque é mãe.
Políticas de saúde pública para mulheres: panorama geral do que é a descriminalização do aborto
De acordo com o documento Política Estadual de Atenção Integral à saúde das Mulheres no Estado da Bahia, “No Brasil, a saúde da mulher foi incorporada às políticas nacionais de saúde nos primórdios do século XX, através dos programas de saúde materno-infantil, sendo limitada, neste período, às demandas relativas à gravidez e ao parto. Em 1979, o Ministério da Saúde desenvolveu o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher/PAISM, que passou a ser implementado lentamente a partir de 1984. Este programa representou um avanço na abordagem da saúde da mulher, enfatizando a necessidade de oferta de ações de promoção, prevenção e de recuperação da saúde, abordando a atenção à saúde da mulher de uma forma integral, estabelecendo como componentes fundamentais a atenção clínico ginecológica, a prevenção e o controle do câncer ginecológico, o planejamento familiar, a atenção no pré-natal, parto e puerpério e a prevenção e o controle das DST (Brasil, 1984). No ano de 2004, o Ministério da Saúde publicou o documento “Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – Princípios, Diretrizes e Plano de Ação”, que se constitui na diretriz para a atenção à saúde da mulher, a nível nacional. Este documento incorpora, num enfoque de gênero, a integralidade e a equidade como princípios norteadores, e busca consolidar os avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, com ênfase na melhoria da atenção obstétrica e neonatal, no planejamento reprodutivo, na atenção ao abortamento inseguro e no combate à violência doméstica e sexual. Agrega também a prevenção e o tratamento das infecções sexualmente transmissíveis (IST), incluindo o HIV/AIDS, e a abordagem das doenças crônicas não transmissíveis e do câncer ginecológico. Além disso, amplia as ações para grupos historicamente alijados das políticas públicas como as mulheres no climatério, mulheres idosas, mulheres negras, indígenas, trabalhadoras do campo e da cidade e mulheres em situação de prisão. Deste modo, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher buscou contemplar as necessidades das mulheres de forma ética e abrangente, considerando as suas especificidades e necessidades. (Brasil, 2004).
Como bem explicam Gabriela S. Müller, Giúlia de Oliveira Aguiar e Isabelle da Silva dos Santos no artigo O Brasil vai cumprir as metas da Agenda 2030?, “Nos últimos 20 anos, organismos internacionais de direitos humanos e especialistas têm afirmado os direitos das mulheres à vida e à saúde, demandando o fim do aborto inseguro – e as mortes e lesões resultantes – em locais onde o aborto é crime. Tal mudança de paradigma foi fortemente impulsionada pela Plataforma de Ação de Pequim, que solicitou a revisão das leis punitivas de aborto. Como resultado muitos países criaram leis e políticas de liberalização do aborto. A América Latina, entretanto, tem caminhado na direção contrária e o Brasil é um dos maiores exemplos disso”.
A criminalização do aborto afasta as mulheres dos serviços de saúde. Por medo, por culpa, por saberem que serão mal atendidas, discriminadas. Os mesmos bons costumes que estruturam a sociedade racista brasileira amparam a moral cristã baseada na formação da família constituída categoricamente na figura central da mãe, que a todos cuida e se devota em nome do bem-estar. Calcula-se que sejam cerca de 500 mil abortos voluntários por ano no Brasil. A lei que criminaliza ainda produz vários abortos inseguros que geram mortes – uma mulher a cada dois dias morre em decorrência de aborto inseguro.
Aliás, o Brasil vem retrocedendo na maioria das metas relacionadas à saúde, educação e trabalho presentes nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). É o que mostra o Relatório Luz. Das 168 metas aplicáveis ao Brasil previstas nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, 110 (65,47%) estão em retrocesso. Segundo a metodologia do relatório, isso expressa as políticas e ações que foram “interrompidas, alteradas negativamente ou sofreram esvaziamento orçamentário.
Em 2022, a Organização Mundial da Saúde atualizou seu guia de cuidados em aborto e, além de recomendar a descriminalização do procedimento, também trouxe como novidade orientações para realizar o aborto via telemedicina, deixando esclarecido que:
“O aborto é uma intervenção de saúde segura e não complexa que pode ser eficazmente gerida usando medicamentos ou um procedimento cirúrgico em vários contextos. As complicações são raras tanto com o aborto farmacológico como no cirúrgico, quando os abortos são seguros – o que significa que são realizados utilizando um método recomendado pela OMS, adequado à idade gestacional, e por alguém com as competências necessárias. A nível mundial, o aborto é um procedimento comum, sendo que seis em cada 10 gravidezes não planeadas e três em cada 10 de todas as gravidezes terminam em aborto induzido. No entanto, as estimativas mundiais demonstram que 45% de todos os abortos são inseguros. Esta é uma questão essencial de saúde pública e de direitos humanos; o aborto inseguro está cada vez mais concentrado nos países em desenvolvimento (97% dos abortos inseguros) e nos grupos em situações vulneráveis e marginalizadas. As restrições legais e outras barreiras significam que muitas mulheres têm dificuldade ou impossibilidade de aceder a cuidados de qualidade no aborto e que podem induzir elas próprias o aborto usando métodos inseguros ou procurando o aborto junto de provedores não qualificados. O estatuto jurídico do aborto não altera a necessidade de aborto de uma mulher, mas afecta significativamente o seu acesso ao aborto seguro. Entre 4,7% e 13,2% de todas as mortes maternas são atribuídas a abortos inseguros, o que equivale a entre 13 865 e 38 940 mortes causadas anualmente pela não realização de abortos seguros.
A descriminalização do aborto é pauta de saúde pública e precisa ser dialogada no coletivo
A linha fina desses mais de 17 mil caracteres é: nós precisamos parar de negociar a vida de mulheres pobres, indígenas e negras. Dia 28 de Setembro é um dia importante na luta por direitos humanos: é o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto.
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida” – Simone de Beauvoir