Mais um ano chega ao seu final e desperta muitas reflexões, análises, conclusões, dúvidas, propostas, planejamentos… Não? Não, mesmo? Será que sou só eu? Não.

Tenho certeza de que não estou sozinho nessa.

E quando o assunto é, como não poderia deixar de ser, aleitamento materno, aí eu sei que somos muitos. Para mim, nesse campo, esse foi um ano, mais uma vez, muito tenso e muito intenso.

Se ao final dessa matéria, você não se sentir pelo menos um pouco desconfortável não sei se é para parabenizar ou para ficar preocupado. Eu fiquei, e não foi pouco enquanto lia e refletia sobre o assunto e, até por isso, fiquei motivado e provocado a escrever.
O mais importante na comunicação é ouvir o que não foi dito. Essa é uma frase de Peter Drucker (1909-2005), um consultor administrativo, professor, jornalista e escritor austríaco, considerado um dos maiores expoentes da Administração Moderna.

Sinto que esse pensamento traduz e explica muitos dos desafios de quem trabalha ou vive o dia a dia da amamentação, da dupla mãe-bebê, das famílias. Falamos muito sobre aconselhamento esse ano. Talvez, esse tenha sido o ano em que mais abordei esse tema (escuta ativa, empatia, sem julgamentos). Evoluímos? Sim, com certeza. Mas, ainda a sensação de que não foi o suficiente.

Para apoiar esse texto, outro pensamento de Peter Drucker:
“A meta do marketing é conhecer e entender o consumidor tão bem, que o produto ou serviço se molde a ele e se venda sozinho”.

Não entendeu? Vai ficar claro durante os argumentos abaixo. Mas, a maioria das mulheres e dos profissionais que vivem no mundo do aleitamento materno já está começando a captar a ideia e a imagem.

Consultoria de amamentação

Essa é uma ocupação recente. Digna, respeitosa, importante, necessária, parte integrante da equipe que atende mães em fase de amamentação, e que requer preparação, estudo, muito estudo, conhecimento básico, experiência na área.

Então, para ser consultora é necessário ter amamentado?
Então, para ser consultora é suficiente ter amamentado?
E aí, um curso de formação resolve?

Vou começar com uma comparação menos nobre, mas muito popular: O futebol.

Eu jogo futebol desde os meus 3 ou 4 anos de idade e cheguei a disputar (poucos) campeonatos oficiais de futsal (futebol de salão). Assisto jogos de futebol, pela TV ou presencialmente (até viajo para acompanhar o time nos estádios), desde os meus 5 anos de idade. Torço para um time de futebol (Santos Futebol Clube, o time do melhor jogador de futebol de todos os tempos – Pelé), também desde os 5 anos de idade. Entendo de táticas, conheço a legislação, tenho amigos na área (jornalistas, historiadores, até jogadores) com quem passo muito tempo trocando ideias, aprendendo, ouvindo histórias. Li e leio bastante sobre o esporte. É um tema que me interessa, que eu estudo, que eu vivi, que conheço, que me interessa diariamente (mesmo com o meu time agora na série B, em seu primeiro
rebaixamento histórico – vamos sair dessa).

Mas tenho plena consciência que para ser um jornalista esportivo, um técnico de futebol, um jogador de futebol, é necessário muito mais do que a minha vivência e minha experiência na área ou um curso.

Vale a mesma abordagem na consultoria de amamentação. É preciso ter uma base.

É preciso estudar. É preciso ter prática. É preciso ter orientação. Isso sem contar a ética, o respeito, conhecer aconselhamento. É preciso trabalhar em equipe, conhecer suas habilidades, suas capacidades e reconhecer suas limitações.

O que ainda falta, na minha opinião é uma regulamentação da atividade como uma profissão. Alguém precisa tomar essa iniciativa. Não podemos ter nossa consultoria, no Brasil, com protocolos que não sejam compatíveis com nossa legislação, nossa experiência e nossa prática.

E é necessário lembrar que ainda assim estamos abordando uma pequena parte privilegiada da população que tem acesso a essa rede de apoio, e é necessário pensar em propostas para a maioria das mães do Brasil, para as que estão em trabalho informal, por exemplo, e que não dispõem de todo esse apoio, ou para as mães que são atendidas no nosso (sensacional) SUS.

O freio de língua

Esse é um tema controverso, polêmico e não resolvido até agora. Notas técnicas (Ministério da Saúde, Instituto de Saúde), posicionamentos oficiais de associações de especialidades (Cirurgia Pediátrica, Otorrinolaringologia, Pediatria, Fonoaudiologia), capítulos de livros, palestras, cursos, congressos, documentos científicos em sociedades científicas foram e continuam sendo “atualizados” sobre esse assunto.

Talvez a principal conclusão de tudo isso seja o fato de que o freio de língua existe, que tem “conformações” diferentes, que tem suas funções, que nem sempre está adequado a elas, e que o que se tem falado e feito em relação a isso está extrapolando qualquer limite da imaginação.

Estudos apontam para 835% de aumento nos diagnósticos e 760% de aumento em intervenções (cirurgias e suas consequências), nos últimos 35 anos. Tudo isso em um quadro que ocorre, de acordo com publicações mundiais, em uma taxa média de 5 a 10% das crianças.

A situação está tão preocupante que virou matéria imensa no New York Times, envolvendo consultoras mesmo referenciadas, dentistas, pediatras, otorrinos, associações, fabricantes de laser, com um título assustador e revelador: “Por dentro do crescente negócio de cortar a língua dos bebês”.

Passou de uma questão de saúde pública para uma abordagem comercial, como um negócio, com estratégias de marketing muito conhecidas, relembrando duas das frases mais repetidas a respeito das indústrias: “Criar dificuldades para vender facilidades” e “Não existe almoço grátis”.

Do texto (eu juro… prepare-se).

“Uma empresa, a Biolase, vende uma máquina a laser por US$ 80 mil. Em abril, organizou uma conferência num resort em Scottsdale, Arizona, para mais de 100 dentistas pediátricos e seus colegas. Chamava-se “Tequila e freios de língua”.

Antes das rodadas de doses de tequila e margaritas, os participantes foram treinados sobre como fazer liberações de língua presa e usar as mídias sociais para construir seus negócios. Dentistas posaram para fotos com garrafas de tequila em um cenário.

O presidente-executivo da Biolase, John Beaver, disse acreditar que a liberação da língua presa é benéfica para os pacientes. Ele disse que o plano de financiamento da empresa significava que os dentistas precisavam realizar apenas três procedimentos por mês para atingir o ponto de equilíbrio e poderiam gerar um “enorme” retorno do investimento fazendo mais.”

Ficou mais preocupado agora? “Deu no New York Times…”

Bom, daqui a pouco, os bebês vão nascer e, antes de serem levados ao contato pele a pele, terão seus freios de língua cortados, “preventivamente”. Inacreditável? Inimaginável? Já atendi, nesse mês, dois bebês assim… Isso não pode continuar.

Apetrechos de amamentação

Para quem pensava que amamentar seria uma questão fisiológica e natural de uma mãe que oferece o leite produzido pelo seu corpo para um bebê gerado em seu corpo, tenho mais uma “notícia” não tão animadora, ou, pelo menos, intrigante.

Parece que pode ser “necessário” um investimento maior em tempo, em finanças, em instrumentos, em orientações (cursos para uso desses instrumentos) que possam viabilizar essa proposta. Com certeza, algumas (bem poucas) dessas novidades podem, de fato, ser úteis para que uma mãe tenha sua trajetória favorecida.

Mas, é espantosa a criatividade do marketing para convencer as mães de que “só” o seu leite, saindo “só” de suas mamas, indo “só” para a boquinha de sua cria seja uma ação que não possa ser concluída sem a ajuda ou a intervenção de agentes facilitadores que pretendem se tornar fundamentais.

Chupeta, mamadeira, escovas para lavar mamadeiras, escorredores de mamadeiras, copinhos, colheres, bicos de silicone, protetor de mamilos pequenos e grandes, almofadas, bombas de leite, conchas, rosquinhas, coletores de leite, absorventes e protetores para seios (laváveis e descartáveis), roupas especiais, geladeiras portáteis, poltronas, colares de amamentação e agora, mais recentemente, relactadores, “sem os quais fica difícil imaginar como uma mãe conseguiria ter “sucesso” na sua jornada de aleitamento materno.
Tanta luta, tanta preocupação com a indústria dos substitutos do leite materno (eu sei que não devemos mais chamar assim, mas vale para o raciocínio) e do seio materno (chupetas, mamadeiras etc.), como seu marketing, com sua evolução e agora surge essa nova questão.

Será que temos que nos preocupar e começar a nos proteger de nós mesmos?

 

Moisés Chencinski é pediatra e homeopata, criador e gestor do movimento “Eu apoio leite materno”. Pode ser encontrado nos perfis do Instagram @doutormoises @euapoioleitematerno @omelhorprodutodomundo

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