Nós precisamos conversar sobre aborto

O dia 12 Junho de 2024 no Brasil foi surpreendente para quem acompanha a mídia tradicional: a Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares. O que a princípio, conforme gravação amplamente divulgada nas redes sociais, era uma votação de urgência, se revelou como ato banalizado: em menos de 30 segundos, o presidente da Câmara, Arthur Lira, ao mesmo tempo em que consultava seu smartphone, declarou como aprovado.

Mas, afinal, o que isso significa? Para compreender esse cenário, é preciso dialogar em partes. Primeiro, o que significa aprovar uma PL em regime de urgência? “Os projetos com urgência podem ser votados diretamente no Plenário, sem passar antes pelas comissões da Câmara”, conforme explicação publicada pela Agência Câmara de Notícias. Ou seja, encurtar o caminho. Fica mais rápido, prático e menos burocrático.

Do jeitinho brasileiro? A quem pode interessar que um projeto de lei que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio? Para responder essa pergunta é preciso compreender o cenário do aborto no Brasil. 

A criminalização do aborto no Brasil tem uma longa e complexa história, marcada por legislações que refletem as profundas divisões sociais, religiosas e políticas do país. 

Código Penal de 1940

O aborto é criminalizado no Brasil desde o Código Penal de 1940, que estabelece penas para a prática do aborto, tanto para quem o realiza quanto para a mulher que consente. Entretanto, o Código Penal de 1940 permite o aborto em duas circunstâncias:

  1. Aborto necessário (ou terapêutico): Quando não há outro meio de salvar a vida da gestante.
  2. Aborto em caso de gravidez resultante de estupro: Quando a gravidez é resultado de estupro e o aborto é precedido pelo consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal .

Mudanças passam a acontecer a partir de 2012, 72 anos depois…

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou uma decisão histórica ao permitir o aborto em casos de anencefalia, condição em que o feto não possui partes do cérebro e do crânio, tornando a sobrevivência fora do útero inviável. Essa decisão representou um marco importante na flexibilização das rígidas leis de aborto do país.

Do ponto de vista de uma mulher que já engravidou e teve filhos e já viveu um aborto espontâneo, me parece bem óbvio ter o direito ao aborto em caso de uma gravidez que vai resultar em não ter um filho vivo. Mas, enfim, o jeitinho brasileiro considerou a legalidade apenas em 2012, há 12 anos atrás. 

Projetos de Lei que precisam ser debatidos

  • PL 478/2007: O Estatuto do Nascituro, que recebeu atenção significativa em 2013, propõe o reconhecimento de direitos ao nascituro desde a concepção. O projeto gerou controvérsia por suas implicações sobre a proibição de todos os tipos de aborto, incluindo os atualmente permitidos por lei​ 
  • PL 5069/2013: Proposto pelo então deputado Eduardo Cunha, este projeto buscava restringir o acesso ao aborto legal em casos de estupro, exigindo um boletim de ocorrência e criminalizando quem fornecesse informações ou auxílio para a realização do aborto​.
  • PL 1904/2024: Apresentado pelo deputado Sóstenes Cavalcante, propõe equiparar o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio simples, incluindo casos de gravidez decorrente de estupro​​. O texto fixa em 22 semanas de gestação o prazo máximo para abortos legais. Hoje em dia, a lei permite o aborto nos casos de estupro, de risco de vida à mulher e de anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto).

Juntando o quebra-cabeça: três projetos de lei que buscam impedir o aborto de qualquer forma, inclusive em caso de estupro.

Se isso tudo é lei, reflete uma realidade. Qual a realidade do aborto no Brasil?

Para falar de aborto do Brasil é obrigatório reconhecer pontos-chave: falar de aborto significa falar de cultura do estupro e saúde pública. 

O contexto atual do aborto no Brasil é de uma legislação restritiva: mulheres não têm direito a seus corpos e não podem abortar. O aborto é criminalizado. Se você abortar e for descoberta, você irá presa. Essa é a idealização da lei. De modo geral e sistêmica, pautando-me pelo senso comum, abortar é considerado, no Brasil, algo errado, tornando a mãe do bebê uma mulher egoísta, vil, uma assassina – que é exatamente o que a PL 1024/2024 propõe.

Aborto é questão de saúde pública: linhas gerais

Nada disso impede, porém, que o aborto aconteça. O aborto no Brasil é uma questão complexa e de grande impacto na saúde pública. Estudos recentes, como a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021, mostram que aproximadamente 10% das mulheres entrevistadas já realizaram pelo menos um aborto em suas vidas. Este número representa uma queda em relação às pesquisas anteriores, que apontavam 13% em 2016 e 15% em 2010.

Os dados também indicam que o aborto é uma experiência comum entre jovens: metade das mulheres que abortaram tinham 19 anos ou menos na época do primeiro aborto, e 6% realizaram o procedimento entre 12 e 14 anos, segundo o documento Aborto no Brasil, da revista AzMina​. Ainda segundo a publicação, a criminalização do aborto no Brasil não tem reduzido a prática, com 21% das mulheres que abortaram realizando mais de um aborto​​.

A questão do aborto é agravada por desigualdades raciais e socioeconômicas. Mulheres negras têm 46% mais probabilidade de realizar um aborto em comparação com mulheres brancas, e a prevalência é maior entre aquelas com menor escolaridade e renda, particularmente nas regiões Norte e Nordeste do país​.

O aborto é um fato. As mulheres realizam. Se ele é criminalizado, precisa ser realizado de forma clandestina. No Brasil, tudo o que é clandestino tem cor e geolocalização. Se for você branco, é permitido. Se você tiver dinheiro, vai assegurar o que precisar e vai sair vivo. Se você for pobre, você não só terá acesso dificultado como corre risco de vida. Se você for preto, você não só terá acesso dificultado como terá sua vida colocada em risco de forma proposital – e se você ainda não sabe, o Brasil é um país muito racista. 

Cultura do estupro: compreender o básico 

A “cultura do estupro” refere-se a um ambiente social que normaliza, trivializa e aceita a violência sexual contra mulheres através de atitudes, práticas, comportamentos e valores. Este termo foi popularizado pelo movimento feminista nos anos 1970 para descrever a forma como a violência sexual é tolerada e perpetuada por meio de uma série de mecanismos culturais e institucionais.

Os dados sobre estupro no Brasil são alarmantes e indicam uma grave situação de violência sexual. De acordo com uma estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil registra aproximadamente 822 mil casos de estupro por ano, o que equivale a dois estupros por minuto, segundo a Agência Brasil​.

A maioria das vítimas de estupro no Brasil é composta por crianças e adolescentes. Dados de 2022 mostram que mais de 60% das vítimas têm até 13 anos​, segundo a VEJA​. Esse tipo de violência ocorre predominantemente no ambiente doméstico, com 70% dos crimes sendo cometidos dentro de casa e 44,4% por pais e padrastos, ainda de acordo com a VEJA​. Entre janeiro e junho de 2024, houve um aumento de 14,9% nos casos de estupro, totalizando 34 mil ocorrências apenas no primeiro semestre do ano, segundo a Agência Brasil​.

A conclusão é básica: estupro no Brasil tem maior incidência e prevalência sobre crianças.


Você se lembra do caso Mariana Ferrer? 

Em dezembro de 2018, a influenciadora digital Mariana Ferrer acusou o empresário André de Camargo Aranha de estupro durante uma festa em um beach club de Florianópolis, Santa Catarina. Mariana alegou que foi drogada e estuprada por Aranha em um camarote reservado do estabelecimento. Apesar das investigações não encontrarem evidências de drogas no organismo de Mariana, ela manteve a acusação de estupro de vulnerável, alegando que estava inconsciente no momento do ato.

Em setembro de 2020, André de Camargo Aranha foi absolvido pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. A decisão se baseou na falta de provas conclusivas de que Mariana estava incapacitada de resistir. A divulgação de um vídeo da audiência judicial gerou grande indignação pública. O advogado de defesa de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, foi amplamente criticado por suas abordagens agressivas e humilhantes contra Mariana, o que foi visto como uma tentativa de desacreditá-la. O caso ficou ainda mais controverso quando o termo “estupro culposo” (estupro sem intenção) foi associado ao caso pela mídia. Na época, as redes sociais de milhares de usuários e perfis de influenciadores e mídias tradicionais publicaram postagens com o termo “não existe estupro culposo”.

A Câmara dos Deputados propôs a criação de uma nova lei para proteger vítimas de crimes sexuais durante os processos judiciais. Em outubro de 2020, foi apresentado o Projeto de Lei 5.096/2020, que posteriormente deu origem à “Lei Mariana Ferrer”: Lei 14.192/2021, que busca proteger a dignidade das vítimas de crimes sexuais durante audiências judiciais. Ela proíbe a utilização de linguagem ofensiva e material que possa humilhar ou constranger as vítimas em tribunais​​.

Criando links: a quem interessa tornar crianças criminosas?

De um lado, a PL 1024/2024, que ficou conhecida nas redes sociais como PL do aborto e PL do estupro. A proposta de criminalizar o aborto resultado de um estupro, sendo que a maioria dos casos relaciona crianças entre 6 e 14 anos. Crianças que não deveriam ser mães. Mas se tornam, diante de uma violência sexual. Por outro lado, a lei Mariana Ferrer que protege vítimas de crimes sexuais durante audiências judiciais. 

Mas se a criança for criminosa, ela deixa de ser vítima. Confere?

Em 18 de Junho de 2024, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira informou que irá criar uma comissão para debater o PL do Estupro e adiou o projeto para o segundo semestre de 2024.

Perguntas que precisam ser feitas, refeitas e ampliadas

  • Por que é interessante tornar mulheres e crianças criminosas em caso de estupro?
  • Para que é plausível perpetuar com uma gravidez indesejada na infância?
  • Para onde vai a menina que se torna criminosa, grávida, dado que ela não pode abortar?
  • Dado que ela é uma criança e está desprovida do desejo de ser mãe, para onde vai o bebê?
  • Qual é a cor, de forma majoritária, dessa menina, no Brasil? Onde ela está geolocalizada?
  • A qual tipo de subsistência, educação e recursos essa menina, de modo perfilado, tem acesso?
  • Como é estar grávida na infância? Como essa gravidez é percebida? Essa criança sabe que foi estuprada?
  • Uma criança grávida leva quanto tempo para perceber que está grávida?
  • Como é abortar legalmente no Brasil? Há assistência qualificada e estruturada em mais de 5 mil municípios? 
  • Mulheres sabem que foram estupradas? O estupro acontece no Brasil em quais cenários?
  • Se uma mulher ou criança são obrigadas a gestar e ter um filho, o que será essa maternidade resultado de um crime sexual?
  • Se uma mulher ou criança são obrigadas a gestar e ter um filho e não desejarem criar o bebê, para onde vai essa criança?
  • Se uma criança é mãe de outra, será que ela pode ir para a casa do estuprador e se tornar também uma vítima? Que pode, posteriormente, ser criminalizada?

Há mais tantas perguntas que precisam ser feitas. Nós precisamos conversar como coletivo urgentemente sobre aborto. Porque ele é um direito ao corpo que precisa ser descriminalizado. 

Essa PL, no entanto, nos leva a outro cenário, anterior, pior e que trata do horror: por que consideramos tolerável, a ponto de ser resolvido em 30 segundos, criminalizar vítimas mulheres e meninas?

 

Juliana Couto é jornalista, especialista em Filosofia e História Contemporânea, especialisa em Marketing, mãe de dois e fundadora do Estúdio Dhalva, voltado para comunicação sobre e para mulheres e mães. É parceira de comunicação para empreendedoras na área de parto natural, amamentação, direitos das mulheres, feminismo, espiritualidade e desenvolvimento feminino. É guardião de círculos de mulheres, é tamboreira por amor. Além de colunista, também é social media da Editora Timo.

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