Autocuidado em retiros para mulheres: a qualidade de estar em si

Como seria estar entre mulheres em um espaço seguro de troca e confiança? Essa é a pergunta que me fiz ao longo de anos da minha vida. Nos últimos anos, essa pergunta foi ampliada e aprofundada, ganhando novos contornos: como seria se nesse ENTRE eu pudesse cuidar de mim mesma e apoiar no cuidado de outras mulheres? Como é estar consigo mesma a partir do seu centro e abrir mão de todos os papéis que, como mulher, você acumula?

 

Eu fui, sou e serei atravessada por estar entre mulheres


Na minha biografia, por ser uma “cria” de muitas mulheres: mãe, cinco tias, avó, prima mais velha. Como adolescente, envolvida e inebriada pelos contos das Brumas de Avalon, quando pela primeira vez tomei nota de que haviam grupos de mulheres que ao longo de muitos anos se reuniam para cuidar de suas magias e lugares de poder. Como filha de santo, desde a infância, que segue a tradição afrobrasileira na Umbanda e no Candomblé, que periodicamente promove retiros para processos ancestrais de cuidado de si e do Outro – e, nesse contexto, filha de santo de mães, principalmente. Seja, por fim, já adulta, após ter me envolvido em encontros, círculos e rodas voltadas para o movimento do sagrado feminino (que por definição merece todos os questionamentos possíveis sobre o que de fato ocupa como intangível feminino).

Qualquer que seja a versão de mim mesma que acessou essas possibilidades, em todas é necessária a visão crítica e consciente dos processos, do tempo e do contexto. Primeiro, para reconhecer que não há espaços perfeitos. Por pressuposto, tudo que está perfeito está morto e aí vem minha primeira crítica: tomar nota de que espaços de autocuidado que privilegiem a estética ultra-pós-moderna calcada no não envelhecer e no plastificar estão, em entrelinha, alimentando a gelidez da perfeição do que pode ser submetido e alienado. Segundo, para reconhecer que quaisquer processos de cuidado e autocuidado que não passem por uma revisão ética e íntima do que é presença deixam espaço, também, para a alienação.

Juliana na frente da Igreja no Quadrado em Trancoso, esse que é um lugar de tantos símbolos – incluindo a alienação.

O caminho de isolamento e de se retirar

Sou uma mulher retirante, com todos os recortes necessários ao uso da palavra na história nordestina brasileira, da qual também sou parte ancestral. De tempos em tempos, priorizo o isolamento e o autoisolamento, tanto para a configuração da ancestralidade afrobrasileira quanto para a configuração de desenvolvimento feminino. Nesse último, participo há três anos dos retiros de Mariana Cogswell em duas qualidades: como retirante e como retiradora, aquela que apoia a condutora do retiro no cuidado de outras mulheres. 

Em Outubro último aconteceu o retiro, intitulado da Alma à Corpa, em Trancoso, na Bahia. No desdobramento e com a intenção de que mais mulheres se abram a processos de autoconhecimento, compartilho do meu lugar e com a minha qualidade o que é estar em um retiro de mulheres.

Isso porque quando se trata de processos femininos, como bem sabemos, os fios que nos conduzem para a alienação são muitos: somos encaminhadas, por programação de fundo, a privilegiar o sex0, não a sensualidade íntima, o servir ao Outro, não a si mesma, a colocar o desejo do homem e do Outro à frente, sem contudo saber o que é desejo de si; somos encaminhadas, por simbolismo, a outras tradições, seja hindu, seja afro; somos encaminhadas à sanga da saia, do cocar, das medicinas da floresta, e um sem fim de recursos que me direcionam a desenvolver uma parte da espiritualidade baseada no que está fora.

Lua Cheia em Áries, vista na praia de Trancoso, na Bahia. Vimos juntas o nascer da lua dialogando sobre o que mulheres dialogam há muito.


E o que está dentro?
E o que em mim pode ser observado?
O que se dá quando coloco em perspectiva?
O que se dá quando coloco em perspectiva em outros espaços, com outras pessoas, outras qualidades?
Com as mesmas pessoas e lugares que são comuns?

De acordo com meus desejos e escolhas?
Meus sonhos? As que já fui? A menina que ainda reside, pequena, e que somente eu posso acessar?
Que parte de dentro é medo de Ser?
Onde ainda me submeto inconscientemente?
Como exerço meu poder pessoal?
Como ocupo espaços de poder?
Como eu sou entre uma nova configuração e um novo entendimento possível e sensível de mim mesma?

Como é essa configuração de ser mulher não porque a sociedade Homem assim me define?
Quais são os processos de mim, com minha biografia, caminho e escolhas, acontecem?
O que eu sustento em primeira pessoa?
O que eu poderia sustentar ao tirar da frente todas essas diretivas externas?

Céu de Trancoso com a visão do planeta Vênus

Despretensiosa de ter respostas (mesmo para mim), busco compartilhar para ampliar um lugar (em construção e atualização) de autocuidado, portanto de espiritualidade, que parte de um lugar íntimo e da ética pessoal, através de um discernimento do qual as mulheres são as portadoras por serem mulheres – corpo aqui reconhecido, e nada disso é sobre segmentar polaridades de energia feminina e masculina, já que tais definições submetem e excluem, distorcendo e justificando delírios coletivos.

Diferenciar e discernir para integrar de forma equitativa, não para sublimar existências.

Estar em contato com a natureza privilegiando a experiência, e não a performance, é um caminho de integração e reconhecimento do sentir. Estar em contato com o registro de si mesma, ora com elaboração, ora com despretensão. Estar em contato com as memórias biográficas e aberta a revisitar traumas, memórias e escolhas com espaço para cuidar em você. Estar em contato com os erros como parte necessária do desenvolvimento feminino. 

Estar em irmandade, sabendo que a competição feminina é um fato instalado para separar tanto quanto a sororidade é um fato instalado para relativizar, e que por irmandade feminina não há comparativo com brotherhood. Estar para si e estar em convivência. Estar em testemunho e se revisitar.

Mesa de oráculos da Cler Barbiero, com quem Mari Cogswell se formou como terapeuta. Oráculos que hablam do caminho do feminino, autoconhecimento e re-conhecimento de si.

 

 

Estar em outro mundo, onde o EU toma a frente com a chance de existir sem culpa, sem tantas amarras e um sem fim de tarefas de cuidar do outro que permeiam as narrativas femininas. Com mais (auto) transparência, ética, com mais descanso, com menos sobrecarga, com mais entrega – permitindo-se, aliás, caminhar em direção ao próprio centro, eis um atrevimento. 

Um salve a todas as mulheres com quem me retirei e me permitiram estar no lugar de cuidar e ser cuidada. Um salve a todas as mulheres que vieram antes, à sabedoria das mulheres e aos conhecimentos que há centenas de anos veem sendo transmitidos em forma de sussurros. Um salve a sair do sussurro, à soltura, à atualização e à autonomia ao modelo mental, a não precisar mais caber, ao desejo em primeira pessoa, às grandes mães e às minhas ancestrais. Axé odara. 

Quando me atrevo a ser poderosa, a usar minha força ao serviço da minha visão, o medo que sinto se torna cada vez menos importante. – Audre Lorde

 

No caminho da maré baixa, em Trancoso, Bahia

Juliana Couto é jornalista, especialista em Filosofia e História Contemporânea, especialisa em Marketing, mãe de dois e fundadora do Estúdio Dhalva, voltado para comunicação sobre e para mulheres e mães. É parceira de comunicação para empreendedoras na área de parto natural, amamentação, direitos das mulheres, feminismo, espiritualidade e desenvolvimento feminino. É guardião de círculos de mulheres, é tamboreira por amor. Além de colunista, também é social media da Editora Timo.

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