Uma questão de ponto de vista

Tem gente que diz que tudo nessa vida é questão de ponto de vista. Isso é simplificar muito as coisas, dizer que é só olhar de outro jeito que tudo se resolve, que até o que parece terrível tem um lado bonito. Para ser sincera, algumas
coisas não têm um lado bonito.

Agora, todas as coisas têm uma lição e entender ela pode sim tornar tudo mais leve. No fim das contas, quando olhamos com amor, até as pessoas que foram nossos maiores algozes também foram mestres em alguns aspectos, nos ensinaram a lidar com algumas situações, até as situações mais duras nos tornaram quem somos hoje, nos mostraram pedaços nossos que podíamos nem conhecer.

E eu bem sei que uma boa parte de quem chegou aqui nesse segundo parágrafo também acredita nisso, mas muitas vezes se questiona como se desenrola na prática essa conversa que é linda na teoria.

A verdade é que só começa a ter sentido na prática praticando, quando nos debruçamos sobre nossa realidade e nos permitirmos olhar de outro jeito pra nossa história, especialmente para as coisas que nos machucaram. Treino é treino, jogo é jogo.

Aceitar que há mais de um ponto de vista é libertador?

Entender que tudo é sim uma questão de ponto de vista é libertador e nos permite tomar decisões muito mais assertivas, mas trazer isso para a vida real requer olhar para nós mesmos como protagonistas da nossa história e não como vítimas dos acontecimentos – o que, cá entre nós, nem sempre é gostosinho, mas vale a pena.

Vamos falar de fatos. Esses dias meu filho veio da escola com um presente pra mim, era um pacote com uns dermocosméticos, suplementos de vitaminas e uma cartinha. Uma homenagem para as mães pelo dia da família. Ainda que eu não seja a mãe da pegada fitness, e vocês bem sabem, achei fofo. E a cartinha era uma drenagem linfática de presente. Abri um sorriso e só consegui pensar que ia ter uma hora deitada num lugar confortável sendo massageada, ouvindo uma musiquinha e ninguém pedindo absolutamente nada para mim. Paraíso.

Ponto de vista: isso é presente de Natal de mãe?

Porém, cinco minutos depois, essa cartinha me fez ter uma crise emocional daquelas. Chorei um tanto. Por quê? Porque lembrei do meu primeiro presente de Natal quando me tornei mãe. Meu menino nasceu em Setembro, então minha
primeira experiência de Natal com ele nos braços aconteceu quando ele tinha só três meses, e eu também só tinha três meses sendo mãe.

E, naquele Natal, eu que costumava ganhar presentes criativos, românticos e/ou lindos encontrei,
literalmente embaixo da árvore de Natal, um espelho pros meus pesadelos: um secador de cabelos e um pacote de drenagem linfática.

Eu sou louca pelo natal, vocês também sabem! Então quem está ao meu redor costuma me mimar bastante nessa data. Simplesmente porque eu mimo todo mundo nessa data. Mas naquele ano eu mal sabia meu nome, estava há meses
sem dormir direito, meu corpo estava estranho, minhas roupas não me serviam, o vai e vem das vacinas estava me deixando emocionalmente exausta e lidar com a maternidade estava sendo bem diferente dos filmes. Bem mais solitário. Se você me perguntasse se eu estava feliz eu diria que estava, porque estava mesmo, mas ninguém me perguntava se eu me sentia inteira. E eu me sentia despedaçada, nem me reconhecia no espelho. E aí, nesse contexto, não rolaram
muitas festas e comemorações de natal naquele ano, só uma ceia em família.

Outro ponto de vista: mães são invisíveis

Bom, quando a gente se torna mãe fica meio invisível. O problema é que a gente não está preparada pra isso. As pessoas entendem que você e o bebê são uma coisa só, especialmente quando é um recém-nascido, então naquele natal o meu
filho recebeu muitos presentes fofos e cheirosos. Já chegavam na minha casa desde o início de dezembro. E claro que eu me senti agraciada também, e muito agradecida, mas nada daquilo era pra mim. Então, na ceia de natal, em que a
minha família coloca sempre os presentes embaixo da árvore, tinham uns vinte pacotes para o meu pequeno e dois pra mim, mas aqueles dois pacotes, por mais insignificante que pareça pra quem não é mãe, valiam por duzentos para mim.
Tinham sido pensados para mim.

Quando abri o pacote maior era um secador de cabelos, de última geração, daqueles que o Wanderley usa e a gente fica pirando, cheio de acessórios. Eu? Eu só conseguia pensar em que hora eu ia usar aquilo se eu mal conseguia pentear o cabelo. Pra mim estava escrito no aparelho: você parece um trapo mulher, se organiza.

E sabe, o espelho já me falava isso com alguma frequência, mas ali foi mais forte. O choro já embargado. Restava o pacote menor, que era bem pequeno, e a minha mente romântica imaginou algo lindo e brilhante, um anel, um cristal, essas coisas que eu costumava ganhar de natal. Talvez ingressos, passagens?

Mas era uma caixa com um cartão: sessões de drenagem linfática a serem agendadas quando eu quisesse. Não tinha nem um eu te amo pra dar uma aliviada. E eu caí num choro completamente descontrolado.

Depois que nos tornamos mães entendemos que não te volta

Acho que uma pessoa que nunca passou pela jornada da gestação não faz ideia do que eu estou falando aqui, da profundidade disso, mas vocês que me leem aqui, em sua grade maioria, passaram, então sabem. Doeu. Doeu mais que um murro. No meu pensamento ali não tinha nada além de uma crítica não tão velada ao meu corpo que já não estava igual, acompanhada de uma “oportunidade” de voltar a ser quem eu era. Só que o lance é que depois que nos tornamos mães não tem volta, porque entendemos que não tem pra onde voltar. Somos outra pessoa, uma versão melhorada e diferente, que quanto mais luta para ser quem era mais se machuca porque, no fim das contas, involuir é impossível.

E foi esse dia, esse desespero de me sentir invisível, essa sensação de que eu já não era admirada ou considerada bonita, de que todos queriam que eu voltasse a ser uma pessoa que eu não era mais, de que o meu mundo tinha caído como diria Maísa, que a cartinha inocente da escola me trouxe de volta. Foram longos dez minutos de choradeira trancada no carro, daquelas que inspiraria música da Adele e tudo.

Depois do caos, coração e alma lavadas

Mas, passado o momento do caos – e o caos é necessário, tudo começa no caos – eu me permiti re-olhar para esse momento e entender o que aconteceu ali comigo. Sem me culpar, mas sem olhar para todo mundo em volta como os vilões
da minha história. Afinal de contas era uma escolha minha continuar deixando aquilo me machucar, sempre é uma escolha nossa. E eu escolhi diferente.

Quando de coração e alma lavadas, depois de chorar nossas dores, olhamos para as coisas como realmente são, percebemos lições importantes ali. No meu caso, o que aconteceu é que as pessoas ao meu redor estavam me estranhando,
assim como eu também estava. Só que enquanto eu estava dentro do tornado elas estavam fora, sem sentir que o mundo delas tinha virado de cabeça pra baixo.

Enquanto eu revisitava minhas certezas e minhas crenças, elas viam uma mulher que costumava estar sempre arrumada totalmente bagunçada, e não entenderam que o primeiro lugar que eu precisava organizar era dentro e não fora.

Esse olhar me permitiu ver de outra maneira aqueles presentes – uma questão de ponto de vista? Eram, afinal de contas, presentes. Aceitei porque quis. E doeu porque ressoou com uma crítica que eu mesma estava construindo dentro de mim. Como eu cheguei a essa
conclusão? Simples, pensei em como eu me sentiria se recebesse os mesmos presentes hoje, que estou em paz comigo. E eu teria gostado muito, sem me importar tanto com o motivo de terem me dado estes presentes. Tanto quanto gostei de receber a massagem da escola.

Não quero dizer com isso que não poderiam ser presentes mais afetuosos. Que foi a melhor escolha. Que eu não teria ficado muito feliz em encontrar debaixo daquela árvore coisas que me fizessem sentir mais amada e acolhida. A diferença
é que dei a esse evento o lugar dele, e me dei conta do quanto dessa história era meu, eram só as minhas sombras saltando pra fora e me assustando.

Maternidade e puerpério, caos ou calmaria?

Maternidade no puerpério não combina muito com a paz e a calmaria que precisamos para olhar com amor para nós mesmas. Parir é visceral, nos rasgamos física e emocionalmente, e damos lugar a uma mulher que sempre esteve ali mas não era muito ouvida, meio selvagem, muito dona de si. E ela não vai mais embora, esse é o negócio, mas ela vai assentando, se ajustando à nossa personalidade. Não passa, porque não tem o que passar. Mas fica bom a hora
que nos sentimos de novo confortáveis em nossa pele.

A drenagem linfática continua sendo uma massagem. Ela não mudou, eu mudei. Enxerguei de outro jeito e foi maravilhoso. E quando eu mudo tudo que está a minha volta muda também.

É essa a diferença de olhar que nos permite viver a vida com mais leveza, entendendo que é mesmo, no fim das constas, tudo uma questão de ponto de vista.

 

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