O que a publicidade infantil tem a ver com as dificuldades alimentares?

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Uma das grandes preocupações que aparece dentre as famílias que me procuram tem a ver com as dificuldades alimentares na infância, que podem se apresentar com diferentes características, como diminuição do apetite, desinteresse pelos alimentos, menor variedade ingerida e/ou desconforto para se alimentar. A publicidade infantil tem participação nesse processo?

Aqui, não vou me aprofundar nas situações em que a dificuldade apontada pelas famílias tem a ver com uma expectativa irreal do adulto, ou seja, quando não nos damos conta que, durante a infância, existe um processo natural de mudanças no padrão alimentar.

Quero abordar quando, de fato, há algo passível de intervenção. Nesse caso, o profissional da saúde irá caracterizar de forma mais detalhada essa dificuldade, compreender comportamentos e situações que podem estar associadas a ela e, assim, trará condutas que irão envolver tanto a própria criança como a família, como criar estratégias para a experimentação de novos alimentos, para a superação de dificuldades sensoriais ou propor mudanças no ambiente alimentar da casa.

Tais estratégias são válidas, mas elas estão conectadas com intervenções individuais ou em pequenos grupos. O que isso significa? Estamos lidando para reverter ou, mesmo, prevenir, um determinado problema.

Mas qual a origem desse problema? Por que crianças desenvolvem dificuldades alimentares? Como muitas situações relacionadas à saúde, não podemos atribuir a uma única causa.

Existem múltiplos fatores que interagem entre si, mas um deles precisa ser colocado em destaque: o marketing infantil. Pode parecer exagero, mas, na verdade, desde muito cedo, até mesmo antes de nascer, somos colocados na posição de consumidores.

Crianças são alvos fáceis do mercado por serem facilmente persuadidas. Em paralelo, as famílias, diante das suas fragilidades e preocupações, também ficam mais expostas ao consumo em prol do cuidado.

Apesar de termos alguma publicidade para alimentos in natura, a grande maioria está direcionada aos produtos ultraprocessados, aqueles que são formulações industriais e incorporam uma lista de ingredientes extensa e com itens não reconhecidos como alimentos. Com isso, temos um impacto enorme nas dificuldades alimentares.

Para alguém em formação dos hábitos alimentares, o fato do ultraprocessado ter características sensoriais (sabor, textura, cor, aroma…) atraentes impactará no desejo da criança pelo consumo e, por consequência, diminui a aceitação de alimentos. Além disso, como o ultraprocessado geralmente fornece muita energia, ele também pode diminuir o apetite. Por fim, ele não é somente um alimento, mas é um produto, que tem uma embalagem sedutora, muitas vezes com personagens dos desenhos que a criança gosta, músicas cativantes nas propagandas, que se vinculam a ideias de brincadeiras e de felicidade.

Quem não se lembra da propaganda de um determinado achocolatado que era cercada de esportes radicais? Ou da música de uma marca de leite com crianças fantasiadas de filhotes de mamíferos?

A estratégia da indústria é tão bem construída que a mesma empresa que produz ultraprocessados infantis, como biscoitos e iogurtes, é aquela que propõe a “solução”, ao também vender complementos alimentares, ricos em dezenas de vitaminas e minerais, exatamente para aquela criança que não se alimenta adequadamente. Mais do que desenvolver tantos produtos, essas empresas se aproximam de quem produz conhecimento e de quem cuida da saúde de crianças, como as associações de profissionais de saúde. Isso agrega seriedade e qualidade à marca que vende itens tão distintos e, obviamente, contribui para a fidelização e consumo.

É fato: a sociedade ainda interfere muito pouco na raiz do problema relacionado às dificuldades alimentares da infância. Pior do que isso, aumentamos a responsabilização individual ao colocarmos a culpa nas famílias por oferecerem biscoitos em vez de uma fruta para o seu filho. Não quero dizer que os adultos seja incapazes de lidar de forma diferente. Porém, é muito complexo agir de forma adequada quando tudo que nos cerca proporciona uma influência com intensidade desproporcional àquilo que gostaríamos de fazer.

Viviane Laudelino Vieira

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