NUNCA ME VI como um tipo de mãe comum. Os filhos nunca vieram em primeiro lugar. O que gera todo tipo de sentimento controverso em plateias diversas. A posição da mãe sempre foi exercido com gosto, mas não se confunde com o prazer de existir sem esse papel. Aceitei o segundo puerpério melhor que o primeiro, mas curti prazerosamente o primeiro final de semana sem o bebê, e a aparente dor da separação da creche, se transformou rápido em labuta diária com a plenitude de muitas responsabilidades engrandecedoras.
Duvidei do potencial da doença no início… Lembro da sexta-feira 13 em câmera lenta, como se me despedisse do cheiro a rua, da roda de samba na praça, de abraçar as pessoas, de sentar no boteco predileto e olhar as amigas e amigos com o copo de cerveja na mão e melancolia prévia. Rodeada da sensação de ‘quando é que poderemos ter isso novamente?’. Hoje penso que nunca. Nada que envolva a presença dos corpos, transpirações e ares tão próximos será exercido da mesma forma. Teria sido uma despedida?
Quando se foi a última roda de encontro, mergulhada no ambiente doméstico, me deparei com todas as teias de aranha da parede, cada tarefa não realizada, com a carga mental antes esvaziada junto com o copo, que não tem mais para onde ir. É preciso acordar e dormir com a boca do fogão que não funciona, preparando cardápios interessantes do café a janta, torcendo para que sejam mobilizadores de humor bom para a convivência intensa entre 4 gerações diferentes. Uma criança, um jovem, uma adulta e um idoso. Necessidades diversas, mesmo espaço, interdependências, saudades.
Eu, que vacilei peremptoriamente, encontrei logo de início os sintomas da gripe e passei a lidar com a suspeita até então nunca comprovada. Foram duas semanas de medo intenso, permeado pela fé. O alento mobilizador das vibrações anulava a confusão de não sentir cheiro algum, paladar nenhum, força muscular dispersa, dores e fraquezas. A precariedade do sistema fez com que o exame realizado até esta data não tenha sido entregue. E o cuidado dos filhos que emocionou os dias, dando alguma ternura.
Em nenhum momento, mesmo na dor e na doença, deixei de ser a mãe que provê, que resolve, decide, demanda as compras e até a que cozinha. Não houve um segundo de carga mental a menos em 40 dias de quarentena. Somadas ao fato de que não ter como contar com mais ninguém, nem cálices com sorrisos para verter.
Mas, a gente se acomoda. Mulher é bicho que se adapta, dizem, e já me compararam à poema de Adélia Prado, daquela desdobrável, que encaixa o que não tem, se for preciso dominar e ultrapassar. Não foi a maternidade que me fez sobrepujar, mas neste puerpério prolongado sem data para acabar, é dela que tiro forças para continuar. Entre a filha que posso ser, mantendo meu mais velho são, entre a mãe que promove o bem-estar para seguirmos aqui, sobreviventes da pandemia, que, dizem, vai passar. [M.E.]
Autora do texto: MORGANA ENEILE, 40 anos, mãe do Teodoro e do Dave, mora no Rio de Janeiro/RJ, é professora, pesquisadora, doula e ativista nas horas cheias.
Publicado em Mães na Quarentena: um livro feito por mães, relatando as experiências de mães durante o isolamento social do Covid-19 em 2020. São 40 relatos com muita humanidade, muita maternidade e perspectivas que trazem à tona muita identificação entre mulheres.