Você não vai conseguir amamentar. Será?

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Dos mesmo criadores de “não conseguirás parir e parirás com dor”, o “não conseguirás amamentar” está envolto em uma série de interesses políticos e industriais que seja no curto, no médio ou no longo prazo pesam sobre os ombros de mulheres que querem amamentar – e que amamentam. O ponto de partida da amamentação é: “Você não vai conseguir amamentar”. 

Para contextualizar a incapacidade de amamentar, vou relatar minha própria história. Recém-parida, em 2015, lidei com o impacto de começar a amamentar e não saber direito o que fazer – até aí, convenhamos, isso é maternar, começar a fazer sem saber direito o que fazer. Minha doula, à época, me colocou em um grupo de apoio à amamentação de São Paulo, a Matrice. Diante da avalanche de informação a que tive acesso via grupo, incluindo referências literárias, orientações de profissionais que acompanham amamentação e conhecimento vindo da prática, ou seja, por quem amamenta, me encontrei indignada por não encontrar na internet, de forma prática e de fácil acesso, aquela quantidade de informação. 

Eu, jornalista, recém-parida, com experiência majoritariamente em jornalismo e conteúdo online, estava estarrecida diante do fato de que nada do que estava ali era óbvio. Compreendi rapidamente a questão da bolha da amamentação. Alguns meses se passaram até que eu assistisse um vídeo no Youtube da Anne Rammi, chamado “Você não vai conseguir amamentar”. De fato, eu estava conseguindo, e eu reconhecia diante das palavras da Anne o que estava por trás: um sistema. A indignação pela restrição à informação me moveu a ser agente de transformação para esse cenário na minha área de atuação principal: escrever. É a partir desse veio, meu movimento diante da desinformação, que, nove anos depois, eu venho escrever sobre o fato de que quando se trata de amamentação o ponto de partida é “Você não vai conseguir amamentar”.

Também eu, quando puérpera, recebi essa sentença em formato quase judicial-familiar. Aquela sonora compreensão que chega pela voz de alguém da família (pode ser também alguém do bem querer que no campo da intimidade faz uso do sincericídio) sentencia a incapacidade do corpo feminino. Amiga, se você conseguiu passar da sentença do parto, saiba que você será bloqueada na amamentação. 

CORPO FEMININO, INCAPAZ

Em primeira instância, é fundante esclarecer: o desejo e a vontade da mulher são soberanos – ou deveriam ser. Nenhuma mulher deve ser obrigada a parir se esse não for seu desejo, nenhuma mulher deve ser obrigada a amamentar se esse não for seu desejo. E, por isso, é preciso escrutinar o que é desejo, o que é vontade, o que nos move enquanto sujeitos da nossa própria história. E aí vem mais uma pergunta: mulheres se identificam com tranquilidade com a ideia de serem sujeitos de si?

Incapacidade de estar no mundo de forma plena pode ser uma notória compreensão do que é ser mulher. Não porque seja minha crença basal nem mesmo porque as mulheres sejam seres frágeis e inferiores, ao contrário. No entanto, porque vivemos em um sistema cujo modelo mental impacta objetivamente nossa carne (haja visto o fato de que todos nós estamos sujeitos à máquina de moer carnes, não é mesmo?), e nesse caso o entendimento de que o corpo feminino é incapaz é construído ao longo da infância, com uma sobrecarga de conceitos e ideias baseadas em uma lógica de educação que cria meninas obedientes, dando ao corpo pouco espaço para a livre expressão, tais como oferecer brinquedos que exijam pouco movimento, estimular brincadeiras onde os corpos das meninas fiquem mais contidos, exigir comportamento de adequamento (“senta direito, garota”), desestímulo a brincadeiras de expansão corporal, domesticação com brincadeiras de casinha e maternidade, com bonecas cujos acessórios contém mamadeiras e chupetas. Esse processo atravessa a adolescência e a vida adulta, em microgestões de subordinação e submissão que desembocam ao mesmo tempo de uma vez e agora no parto e na amamentação. 

EU VOU CONSEGUIR AMAMENTAR SIM. SERÁ?

Partindo do entendimento de que a amamentação é um ato cultural, e por isso atravessado de uma natureza do corpo e de contexto social, político e econômico, de algum modo muito incômodo mulheres precisam se convencer de que são capazes de manter algo que é um processo inevitável do ciclo reprodutivo. O corpo de uma mulher vai produzir leite materno. Ponto. Não há se, quando, debate que dê conta de justificar a ausência de produção de leite materno. O corpo humano é ligado à natureza e em sua função mamífera vai majoritariamente produzir leite materno. 

Tudo que estiver contra esse entendimento quer bloquear a amamentação. Por várias razões, muitas vezes subjetivas. Importante reforçar que o subjetivo se manifesta no objetivo. Assim surgem os mitos, os preconceitos e se sustenta uma enorme falácia que pune mulheres que amamentam durante o curso da jornada de amamentação – depois que termina, fica tudo lindo e se torna realmente in-crível que tais crianças sejam muito saudáveis, obrigada. O crível mesmo, que envolve o fato de que uma mulher buscou essa saúde, é desconsiderado. 

Tudo desemboca na amamentação, como um córrego a céu aberto da periferia de São Paulo, que cheira mal e está cheio de lixo, mas que contém uma canalização de cimento que dá conta de deixar bonito para quem vê. Tudo desemboca na amamentação.

Juliana Couto amamentando seu filho, Miguel, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

A privação de sono característica da amamentação é um fato que impede mantê-la. Não porque os bebês são absurdamente insones, mas pelo fato de se compreender a amamentação como tarefa isolada da mulher, que pouco recebe apoio ou revezamento de cuidados do bebê. A tarefa é coletiva. O processo em si está centrado no binômio mãe-bebê, mas há um entorno enorme que influencia em todo o processo. O que essa mulher mantiver sem apoio terá consequência sobre sua saúde, destacando, aqui, a mental. No pacote da amamentação entram as tarefas domésticas, as tarefas culinárias e todos os cuidados do bebê. A maternidade é referenciada apenas na mulher, distorcendo o entendimento de que sim, a mãe é fundante para a criança, e todo o entorno precisa ser fundante para que ela, por curto período, se dedique por muito tempo. 

A romantização, uma marca do processo de maternar, é um fato que impede manter a amamentação. Amamentar é um processo que envolve muitas emoções, sentimentos e expectativas. E é um balde de água fria na ilusão, muitas vezes, de que maternar é algo sempre alegre. Justamente estabelecida durante o puerpério, a amamentação fornece desilusão. E no pacote de convivência coletiva em que estamos inseridos, a desilusão não é vista como parte, mas como algo a ser evitado. No processo de romantização que esteriliza relações, mulheres se sentem incapazes diante de sua vulnerabilidade não abraçada e bebês que não se relacionam de forma racional, mas de forma profundamente anímica, vinculada e dependente. 

O trabalho envolvido na maternidade. Acostumados a dormir mal ou pouco e a dedicar grande parte do entendimento do que é viver ao trabalho e aos resultados monetários do que é trabalhar, somos esquecidos e nos esquecemos que o entendimento da vida é viver e que nem todo trabalho é remunerado. Há muito corpo, presença e disponibilidade envolvidos para manter amamentação, sem políticas públicas que ofereçam segurança à mulher que amamenta diante de uma sociedade hiper objetificada e hipersexualizada que já liquefez a autonomia do corpo. É o trabalho do cuidado não remunerado que mantém a estrutura em que vivemos de pé, e as mulheres e crianças estão base da pirâmide, de braços esticados e crianças tentando brincar no chão. Amamentar não é um trabalho que deva ser remunerado, mas o trabalho de criar e orientar um ser humano precisa ser reconhecido e bem amparado por políticas públicas que promovam espaço para novos entendimentos do que é família, criação de filhos e manutenção de sociedade.

A indústria dos bicos artificiais e da fórmula infantil. De fato, o acesso à informação é crucial e determina quem terá mais ou menos saúde. Para alguns, no curto prazo. Para outros, no longo. O marketing das indústrias estabelecido ao longo do século 20 (e replicado e diversificado em vários setores da indústria) levou consigo qualquer compreensão de autonomia do que é amamentar. A começar pelo fato de que uma mulher precisa pensar se vai conseguir ou não. Foi o discurso publicitário, baseado na agenda liberal, no lucro de diversos setores industriais e na submissão de mulheres e crianças, que permitiu a transformação de critério, o questionamento sobre a natureza do próprio corpo, independentemente do resultado, amamentar ou não. Isso porque, ainda que você consiga, a dúvida sobre sua autonomia vai persistir. Essa indústria está metodicamente dedicada a ocupar espaços e retirar o entendimento basal do que é amamentar: nutrir com o melhor alimento e um possível vínculo de qualidade.

Pessoalmente, eu tinha certeza que conseguiria amamentar, mesmo mal informada. Não recomendo: o caminho seguro é informativo, bem amparado em conhecer mais de si mesma e de seu entorno, buscar ativamente criar uma rede de apoio, buscar outras mulheres e grupos de apoio (como a Matrice) onde a prioridade seja o livre direito a amamentar, sem, no entanto, relativizar o assédio da indústria e de uma cultura que nos torna submetidas. Pessoalmente, eu amamentei por mais de seis anos, dois filhos. E essa escolha também teve consequências, exigiu rompimentos, mudanças de caminhos, abrir mão de desejos e sonhos, porque também as minhas privações foram direcionadas para amamentação, ainda que eu lutasse contra, porque quando se trata de ser mãe, o isolamento é implacável. Quanto mais nota mental tivermos sobre isso, mais fica evidente novas formas de combater.

Você não vai conseguir amamentar. Mas eu espero que você consiga. Eu espero que você deseje. Que você queira querer. E que um dia o querer transborde no seu corpo e no seu entendimento de autonomia, na sua voz que peita os assédios que chegarão, no seu leite que nutre, alimenta, fornece estrutura psicológica e também emocional, que não é garantia de nada em relação ao filho, mas que é uma bússola na retomada do seu lugar de direito sobre você mesma. Nove anos depois, a amamentação me proporcionou muito, incluindo noites de sono, noites em claro, sem bicos ou fórmulas, sem intercorrências, muita desilusão, desromantização e novas compreensões do que é possível enquanto mãe. Não porque sou plena. Mas porque ocupo um lugar político.

 

Juliana Couto é jornalista, especialista em Filosofia e História Contemporânea, especialisa em Marketing, mãe de dois e fundadora do Estúdio Dhalva, voltado para comunicação sobre e para mulheres e mães. É parceira de comunicação para empreendedoras na área de parto natural, amamentação, direitos das mulheres, feminismo, espiritualidade e desenvolvimento feminino. É guardião de círculos de mulheres, é tamboreira por amor. Além de colunista, também é social media da Editora Timo.

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