Em 1989, uma estudiosa feminista, americana e ativista antirracista, Peggy McIntosh, escreveu um ensaio intitulado: “White Privilege: Unpacking Invisible Knapsack” (Tradução livre: “Privilégio Branco: Desempacotando a Mochila Invisível”).
Essa publicação começa pela sua atuação como feminista, analisando a “relutância dos homens em admitir que são superprivilegiados, mesmo admitindo que as mulheres sejam desfavorecidas”. Apesar da proposta de apoio em “melhorar” o status das mulheres, os homens não aceitam a ideia de diminuir seus privilégios.
Nessa mesma linha, a autora reconhece uma ligação entre as questões desses privilégios de gênero com o recorte de questões raciais. Ela, como uma pessoa autoconsiderada branca, percebeu que, apesar de ter sido educada sobre como o racismo coloca os não brancos em “desvantagem”, não foi ensinada a reconhecer os seus privilégios e, assim, a tentar trabalhar em prol do “ajuste de contas”.
Segundo sua descrição, “o privilégio branco é como uma mochila invisível e leve de provisões especiais, mapas, passaportes, livros de códigos, vistos, roupas, ferramentas e cheques em branco” e traz privilégios de pele não merecidos e que são tão estruturais que acabam sendo não valorizados e até esquecidos.
A sua proposta “corajosa” foi de tentar identificar quais efeitos do privilégio de ser branca em seu dia a dia são mais relevantes do que seu status socioeconômico- cultural, religião que, apesar de serem interligados, cria uma lista de condições que não têm a mesma “permissão” para quem não é branco.
Entre uma lista de 26 possibilidades, selecionei algumas que podem trazer essa distinção de privilégios, pelo recorte racial:
– Posso ligar a televisão ou abrir a primeira página do jornal e ver pessoas da minha raça amplamente representadas.
– Posso ter certeza de que meus filhos receberão materiais curriculares que
comprovam a existência de sua raça.
– Posso proteger meus filhos, na maior parte do tempo, de pessoas que talvez não gostem deles.
– Posso facilmente comprar pôsteres, cartões postais, livros ilustrados, cartões comemorativos, bonecas, brinquedos e revistas infantis com pessoas da minha raça.
– Posso ter certeza de que, se precisar de ajuda jurídica ou médica, minha raça não atuará contra mim.
– Posso escolher coberturas para manchas ou curativos na cor “pele” e fazer com que combinem mais ou menos com minha pele
Mas, raça e sexo não são os únicos sistemas de vantagem em ação. Vivemos em um mundo de outras vantagens como idade, capacidade física, relacionada à nacionalidade, religião ou orientação sexual. E todas elas merecem essa mesma visão e mesma avaliação. E vale ressaltar que essas vantagens não têm nenhuma relação com merecimento e, sendo assim estabelecidas pela sociedade e de forma estrutural, mesmo que fosse não intencionalmente, são opressoras.
A partir dessa visão, a Universidade do Estado de Nova Iorque em Albany criou uma atividade conhecida como Privilege Walk (Caminhada dos Privilégios) com a intenção de que as pessoas reconhecessem e entendessem os diferentes tipos de privilégios na sociedade, muito utilizada em ambientes acadêmicos, no mundo corporativo e em movimentos de diversidade. A prática desse “exercício” é baseada em participantes formando uma fila, lado a lado, e dando passos para frente ou para trás com base em respostas a certas questões.
O questionário é elaborado para cada situação e, ao final das respostas, a fila se desfaz e a presença dos privilégios é demonstrada trazendo a consciência das diferenças existentes gerando possibilidades de ações para mudanças.
Caminhada dos Privilégios na Amamentação. Temos?
Tomando a liberdade de adaptar essa atividade para a amamentação, vou fazer a minha lista de perguntas, meio que sem uma ordem específica, nem de datas, nem de importância, bem aleatória. Cada mãe, cada lactante, cada mulher pode fazer a sua. Ao final, a proposta é que a fila formada demonstre quem, não por mérito, mas por questões estruturais, tem ou não privilégios e pode ser ajudada ou prejudicada em suas intenções de amamentar.
Só uma regra: Para cada resposta SIM, você dá um passo à frente e para cada resposta NÃO, um passo atrás. Se não achar sua resposta, permaneça no lugar.
Pra ficar mais “divertido” (só que não), faça isso em seu grupo de amizades ou de trabalho ou da família, ao vivo.
ALERTA: ISSO NÃO É JULGAMENTO. É SÓ UMA PROPOSTA DE REFLEXÃO.
– Você vem de uma família com tradição de amamentação?
– Você já amamentou?
– Você tem amigas que amamentaram?
– Você trabalha em empresa com direitos trabalhistas?
– Você trabalha em empresa que oferece 6 meses de licença-maternidade?
– Você tem rede de apoio?
– Você fez pré-natal desde o início até o final da gravidez?
– Você fez uma consulta com o pediatra durante o seu pré-natal?
– Você tem acompanhamento com profissionais de saúde materno-infantil que protegem, apoiam e promovem a amamentação, sem conflito de interesses?
– Você tem/teve o desejo de amamentar?
A partir daqui a regra muda (pra não ficar monótono). Para cada resposta NÃO,
você dá um passo à frente e para cada resposta SIM, um passo atrás.
Amamentar é um privilégio racial?
– Você já foi constrangida ou até ameaçada por amamentar em público?
– Você já foi constrangida ou até ameaçada por amamentar por tempo
“prolongado”?
– Você já foi constrangida ou até ameaçada por questão racial quando amamentava?
– Você já se sentiu na posição de ter que escolher entre a amamentação e seu trabalho ou entre a amamentação e sua sexualidade?
– Você é trabalhadora informal, sem direitos trabalhistas?
– Você se sentiu pressionada a oferecer fórmulas, mamadeiras ou chupetas com seu bebê?
– Você fez cirurgia de redução de mamas ou implante mamário?
– Você segue influenciadores nas redes que fazem publicidade de fórmulas,
papinhas, mamadeiras, chupetas?
– Acordar à noite para amamentar te incomoda muito?
– Você é a principal ou a única fonte de renda em sua casa?
Agora me conta. Conseguiu terminar a atividade?
Mesmo que você tenha feito sozinha, ficou mais claro que se hoje você conseguiu atingir seus objetivos de amamentação, quaisquer que sejam eles, você é uma privilegiada?
Conseguiu entender que há questões estruturais que não dependem de você, que já estão estabelecidas e que só serão superadas com muito esforço, vontade, luta e dedicação? E que mesmo assim, nem sempre você vai conseguir e que isso não é “culpa” sua?
A maioria dessas questões representa situações para as quais não há mérito, não depende só de esforço ou dedicação, é resultado mais da estrutura e do meio em que você nasceu, vive e atua, e que virou “privilégios” que não se pode mudar.
Mas a consciência desses fatos, dessas “vantagens” ou privilégios, é fundamental quando se busca equidade e, mais do que isso, a justiça.
Esse texto que aborda amamentação é uma proposta para reflexão, para conscientização, a respeito desse e de muitos outros temas da nossa vida.
Quão privilegiada você se sente?