O pau que dá em Chico dá em Francisco?
Já ouviu essa expressão? Sabe o que ela quer dizer? Em movimento incomum, a Nestlé foi retirada de patrocinadora de congresso de obesidade. E o que isso tem a ver com amamentação?
Explicação do Dicionário Informal:
A expressão releva a necessidade de igualdade/isonomia. A expressão faz alusão à ideia de que “Chico” é uma pessoa qualquer, sem posição social relevante, enquanto “Francisco” é uma pessoa relevante, com posição social de destaque.
Mas, no final, todos são iguais, pois todo Francisco é Chico e todo Chico é Francisco, razão pela qual não há que se diferenciar na aplicação de uma norma.
Segundo o Artigo 5º da Constituição Federal do Brasil:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”
Sem entrar no mérito da lei, quero aqui que essa ideia fique na cabeça do leitor, enquanto percorrer o texto.
Conferência sobre obesidade abandona Nestlé como patrocinadora após protestos
Essa matéria foi publicada no British Medical Journal (31/03/2023). O Congresso Europeu sobre Obesidade removeu a Nestlé como patrocinadora, após condenação generalizada nas redes sociais. Agora, uma carta aberta, publicada no The BMJ, pede que a organização vá além e remova todo patrocínio corporativo e presença em seus eventos científicos.
Segundo Christoffer van Tulleken, professor associado da University College London, “o patrocínio da Nestlé a um congresso sobre obesidade é exatamente o mesmo que uma empresa de tabaco patrocinar um congresso sobre doenças relacionadas ao tabagismo. O negócio deles depende do aumento das vendas globais de alimentos associados à obesidade. Eles não podem ser parte da solução.”
“As instituições não podem ter interesse financeiro e causar um problema ao mesmo tempo em que afirmam ter interesse em soluções efetivas; constitui um conflito. E sabemos por uma grande quantidade de pesquisas em setores industriais – mas especificamente na indústria farmacêutica – que, quando a indústria se envolve em pesquisas, causa viés, também conhecido como corrupção.”
Esse fato ocorreu antes do Congresso Europeu de Obesidade de 2023 (ECO2023) que acontecerá de 17 a 20 de Maio em Dublin, organizado pela Associação Europeia para o Estudo da Obesidade (EASO). Após várias reclamações no Twitter, o logotipo da Nestlé foi retirado da lista de patrocinadores e a marca da subsidiária PronoKal (uma marca de perda de peso de propriedade da Nestlé) desapareceu no mesmo dia. O patrocínio valia £ 40.000 (250 mil reais).
Na mesma matéria, uma das justificativas para essa atitude é que as empresas “são grandes produtores de alimentos ultraprocessados e outros produtos cujo consumo acarreta problemas de saúde, inclusive aumento do risco de obesidade. Portanto, é incoerente para a conferência tê-los como patrocinadores… existem outros problemas éticos associados à Nestlé, como o marketing agressivo de fórmulas infantis em países em desenvolvimento.”
Essa colocação se torna mais relevante quando a própria indústria citada admite que mais da metade de seus produtos (54%) não são saudáveis, de acordo com o Health Star Rating (HSR) que mede a qualidade dos produtos levando em consideração gordura saturada, açúcar e sal, bem como “nutrientes positivos”, como fibras, frutas e vegetais em sua escala nutricional. Apesar de a empresa já ter alguns progressos na redução de sal, açúcar e gorduras saturadas de alguns produtos, em outras categorias como a confeitaria não existe a menor condição de atuação para torná-las saudáveis.
Segundo informações, em 2022, o grupo teve um faturamento de pouco mais de 95 milhões de euros, incluindo esse tipo de produção.
E na mesma revista foi publicada uma carta aberta de opinião, referenciando o Congresso Europeu sobre Obesidade como “uma das principais conferências globais para médicos, nutricionistas, cirurgiões e pesquisadores no campo da obesidade”.
Nessa carta foram propostas estratégias a serem adotadas, entre as quais quero ressaltar:
- Os profissionais de saúde precisam de educação e treinamento sobre esses assuntos. É encorajador ver sessões na ECO2023 dedicadas à influência da indústria e aos determinantes comerciais da saúde;
- Em última análise, os comitês organizadores de eventos científicos e de saúde devem considerar o fim de todos os patrocínios de empresas. Outras organizações adotaram essa política. O Congresso Mundial de Nutrição em Saúde Pública, o Congresso Mundial de Aleitamento Materno e o Congresso da Sociedade Latino-Americana de Nutrição, para citar alguns exemplos, são financiados de forma independente e não contam com a presença de empresas.
E como recomendação final da carta: “É hora de retirar o patrocínio corporativo e a presença em eventos científicos e de saúde”. - Enquanto isso…
Em 2015, a Sociedad Latinoamericana de Nutrición (SLAN) recebeu um abaixo- assinado por vários pesquisadores em nutrição e saúde pública das Américas, entre eles Carlos Monteiro, Cesar Victora, e ainda Fábio Gomes e Joaquim Molina, ao fim do 12º Congresso da Sociedade Latinoamericana de Nutrição. - Nesse abaixo-assinado, foi definido que indústrias de alimentos e bebidas (Coca Cola, Unilever, Nestlé, entre elas) não seriam mais aceitas como patrocinadoras de conferências de alimentação e nutrição, incluindo a Reunião SLAN, visto que estasindústrias contribuem com a atual epidemia de doenças crônicas no mundo.
- Essa era a meta sobre conflito de interesses que continua em vigor até hoje, e será atualizada e revisada na Assembleia em 2023 que acontecerá em Cuenca (Equador). “Adotar uma norma de conflitos de interesses e orientações em relação à organização de eventos científicos e outras atividades.”
- Já abordei conflitos de interesses por aqui algumas vezes nesses anos (“A indústria dos “substitutos do seio materno”“, “Lobo em Pele de cordeiro” e “Tentativa de golpe no aleitamento materno”, entre outros). Mas, parece que o conceito ainda não é claro por aqui, mesmo com essa manifestação e recomendação da SLAN, da qual o Brasil faz parte.
- Porém, vários eventos (lives, congressos, jornadas) sobre nutrição, inclusive infantil, apresentam o logo e patrocínio das indústrias de substitutos de leite materno, inclusive com espaço dedicado na programação a Simpósios Satélites, abordando intervenções nutricionais e benefícios em nome de uma nova puericultura, ou da gestação até a fase pré-escolar.
Publicações relevantes de atualizações sobre nutrição infantil, lançados também por associações representativas da classe pediátrica, mostram uma “parceria” com indústria da área alimentícia, com agradecimentos à empresa logo nas primeiras páginas e não se baseiam nas recomendações de estudos sérios e reconhecidos, publicados pelo Ministério da Saúde como o Guia Alimentar para a População Brasileira (2014) ou o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos (2019).
Existem leis no Brasil que regulamentam todas as áreas da alimentação (produção, distribuição, rotulagem, marketing entre outras) como a NBCAL (Lei 11.625 – 2006) e a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei 11.346 – 2006).
Reflexões
- Os europeus e os latino-americanos se preocupam com a saúde de sua população.
- As instituições brasileiras se preocupam com a saúde de sua população.
- Existe um consenso de que alimentos ultraprocessados não são saudáveis.
- As avaliações de sobrepeso e obesidade seguem os mesmos critérios no mundo.
- A própria indústria admite que mais da metade de seus produtos não é e nunca será saudável.
Então:
- Por que as propostas não são coerentes e semelhantes?
- Por que a compreensão sobre conflito de interesse não é a mesma se o conflito é igual?
- Por que se aceita que alimentos ultraprocessados sejam produzidos e distribuídos tão livremente, sem controle?
E, para concluir:
Chicos ou Franciscos? Qual é nosso futuro?
Moisés Chencinski é pediatra e homeopata, criador
e gestor do movimento “Eu apoio leite materno”.
Pode ser encontrado nos perfis do
Instagram @doutormoises/@euapoioleitematerno/@omelhorprodutodomundo