Saúde mental materna: a caminho do viver (e não sobreviver)

A maternidade é uma jornada única na vida de uma mulher. Caracterizada por uma série de experiências inesquecíveis, complexas e paradoxais, é uma vivência que, definitivamente, muda a vida de uma mulher. Para qualquer mulher que se torne mãe, existe um divisor de águas: quem eu era antes, quem eu sou depois. 

Seja pela experiência romantizada, seja pela experiência sacralizada (e alienada) da religião, seja pela visão corporificada e baseada no olhar para a sociedade, o fato é que a mudança é palavra de ordem, se não sinônimo. 

Nenhum desses casos, no entanto, é uma promessa de felicidade constante, caminhos abertos e alegria contínua. Quem é mãe sabe do que estou falando – se você não é mãe, quanto antes você puder reconhecer esses contextos nas mulheres à sua volta, melhor. Ao contrário, a realidade da mãe é diversa, permeada por uma série de violências e abusos em diversas instâncias da sociedade.

Em 2024, mais do que nunca, não se pode falar em maternidade sem falar em saúde mental. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) saúde mental “refere-se a um bem estar no qual o indivíduo desenvolve suas habilidades pessoais, consegue lidar com os estresses da vida, trabalha de forma produtiva e encontra-se apto a dar sua contribuição para sua comunidade”. Como a maternidade se encaixa nessa descrição? 

Saúde mental no pós-parto: tudo muda e muda tudo

Segundo o programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), uma em cada quatro mães em situação de vulnerabilidade socioeconômica no Brasil apresenta sintomas de depressão no primeiro ou no segundo ano após o parto – ou em ambos, segundo estudo que acompanhou a situação psicológica de 3.200 mães entre 2018 a 2021, em 30 municípios da Bahia, Pará, Ceará, Pernambuco, Goiás e São Paulo.

De acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, realizada por pesquisadores da Fiocruz, que entrevistou 23.894 mulheres, há prevalência de 26,3% de sintomas de depressão entre 6 e 18 meses após o parto. Os principais fatores associados à depressão foram ser de cor parda, ter história prévia de depressão, gravidez não planejada, baixa condição socioeconômica, multiparidade, uso abusivo de bebida alcoólica e tabagismo.

Segundo a OMS (2022) uma em cada cinco mulheres terá um episódio de saúde mental durante a gravidez ou no ano após o nascimento do bebê.

O início da maternidade é marcado por vulnerabilidade. É preciso estar vulnerável para se tornar mãe (e não na mesma medida, mas na mesma frequência, assim como ser mulher, não se nasce, torna-se). Na medida em que a mulher que se torna mãe transmuta em sua identidade para abarcar a si mesma essa nova parte de sua vida, em seu entorno muito também se transmuta. Muitas vezes, não para melhor.

A maternidade no modelo mental e real em que estamos inseridos é marcado por solidão – a mulher que crie, quem pariu Mateus que embale. É marcada por violências a nível psicológico e patrimonial, dentro das realidades íntimas e expandido na realidade social. Mulheres que se tornam mãe são excluídas do mercado de trabalho, são sobrecarregadas de tarefas mentais e domésticas. Sobre as mulheres é depositado o pesado ora de uma maternidade sacralizada, de base religiosa vigente, pautada pelo sacrifício, ora de uma sobrecarga heroica, também pautada pelo sacrifício sob a lógica do “trabalhe como se não fosse mãe e seja mãe como se não trabalhasse”. A maternidade compulsória vai muito bem (e muito além), obrigada.

As marcas do que se vive violentamente e socialmente como mãe são indeléveis e passam a constituir um novo tipo de pele em cada mulher que vive a maternidade – em suas realidades que precisam ser individualizadas como ser e recortadas em grupos e classes sociais. 

Isso quer dizer, então que ser mãe é ruim, que vai me fazer mal?

Já ouviu falar sobre aquela máxima “eu amo meu filho, mas eu odeio ser mãe”? Ela vai de encontro justamente a essa imagem, projetada, que pouco prevalece em autonomia e muito sobrecarrega de checklists do que deve ou não deve ser uma mãe – sem, aqui, tirar nem por a responsabilidade social e emocional que é criar outro ser humano, tarefa essa, por associação básica, destinada às mulheres.

Ser mãe tem suas alegrias, seus processos pessoas e íntimos. Do único lugar de fala que posso ocupar, o meu próprio, e em testemunho a pelo menos uma centena de mulheres que já entrevistei ou dialoguei sobre a jornada materna, há de fato uma profunda transformação. Ela pode ser furiosamente avassaladora e levar ao chão tudo o que se pensava até então sobre si. Todas estamos sujeitas a isso. E não é obrigatório engravidar e parir para viver isto – dado que é uma característica sobre mulheres, não sobre mães.

No entanto, há aquisição de qualidades. Mulheres que se tornam mães mudam. Adquirem novas habilidades pessoais, passam a lidar com os estresses da vida de outro forma. Se até então o tema “trabalho” não era desdobrado em muitos significados, o será após a maternidade, porque tão evidente quanto a Lua é a compreensão vivida do que é o trabalho não remunerado, o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo. O boleto mensal vitalício? Para mulheres – e se você que me lê não é mãe, acredite, na próxima curva do rio alguém no seu enredo vai te designar a tarefa materna. Carga mental, carga operacional, carga emocional (coloca no lombo e vai).

Em todo o mundo, as mulheres empregam em média 4 horas e 25 minutos por dia em trabalhos de cuidado não remunerados, enquanto os homens gastam em média 1 hora e 23 minutos por dia no mesmo tipo de serviço, segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2018. A média de horas semanais dedicadas a tarefas domésticas é quase o dobro maior em mulheres do que em homens, com 21,4 e 11 horas, respectivamente, segundo a Oxfam. 

Eu até poderia te dizer que se vamos juntas vamos melhor, mas…

Quer melhorar a saúde mental materna? 

É preciso conversar sobre limites. Até onde vai o papel materno e quais os outros papéis, no plural, que estão esvaziados de agir e de cuidar para que uma mulher que se torna mãe adoeça. Há, de fato, sintomas sociais. É preciso buscar apoio profissional e na grande maioria das vezes uma forma de viver e cuidar de uma criança financeiramente sem suporte. Mas há, também, fatores pessoais. 

Muitas vezes precisamos nos desapegar de imagens e ideias que nos chegam prontas como ser e estar no mundo. Ser mãe é uma delas. Talvez você se torne uma mulher furiosa, briguenta e crítica. A maioria que eu conheço que ficou assim mudou muita coisa, criou coisas incríveis. E também adoeceu mentalmente – é meio que um projeto de ser mulher neste mundo adoecer, capisce?

Saúde mental materna é sobre limites, saber dizer não, autocuidado, recurso financeiro, busca de emancipação e independência financeira, reforma cultura, reparo histórico para centenas de mulheres, garantia de aposentadoria para mães e avós, garantia de escola, segurança alimentar, tempo livre, tempo de não executar tarefas de cuidado, acesso ao estudo, acesso ao trabalho. Basicamente, sobre estruturas de justiça social. Quando se fala que saúde mental em risco não começa da noite para o dia, é verdade. No meu caso, vai até minha quinta avó. E no seu?

 

Juliana Couto é jornalista, especialista em Filosofia e História Contemporânea, especialisa em Marketing, mãe de dois e fundadora do Estúdio Dhalva, voltado para comunicação sobre e para mulheres e mães. É parceira de comunicação para empreendedoras na área de parto natural, amamentação, direitos das mulheres, feminismo, espiritualidade e desenvolvimento feminino. É guardião de círculos de mulheres, é tamboreira por amor. Além de colunista, também é social media da Editora Timo.

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